Como foi inventado o povo judeu - Um livro importante de Shlomo Sand

Embora crescentemente desmentidos pela arqueologia, pela genética e pela historiografia séria, os mitos de que se alimenta o sionismo continuam a constituir a base em que assenta a reivindicação de legitimidade do estado etnocrático, confessional, racista e colonialista de Israel. O «Estado do Povo Judeu» assume-se como democrático. Mas a realidade nega a lei fundamental aprovada pelo Knesset. Não pode ser democrático um Estado que trata como párias de novo tipo 20 % da população do paÍ­s, um Estado nascido de monstruoso genocÍ­dio em terra alheia, um Estado cuja prática apresenta matizes neofascistas.

Uma chuva de insultos fustigou em Israel Shlomo Sand quando publicou um livro cujo tÍ­tulo - «Como foi inventado o povo judeu” * - desmonta mitos bÍ­blicos que são cimento do Estado sionista de Israel.

Professor de Historia Contemporânea na Universidade de Tel- Aviv, ele nega que os judeus constituam um povo com uma origem comum e sustenta que foi uma cultura especifica e não a descendência de uma comunidade arcaica unida por laços de sangue o instrumento principal da fermentação proto-nacional.

Para ele o «Estado judaico de Israel», longe de ser a concretização do sonho nacional de uma comunidade étnica com mais de 4 000 anos, foi tornado possÍ­vel por uma falsificação da história dinamizada no seculo XIX por intelectuais como Theodor Herzl.
Enquanto académicos israelenses insistem em afirmar que os judeus são um povo com um ADN próprio, Sand, baseado numa documentação exaustiva, ridiculariza essa tese acientÍ­fica.

Não há aliás pontes biológicas entre os antigos habitantes dos reinos da Judeia e de Israel e os judeus do nosso tempo.
O mito étnico contribuiu poderosamente para o imaginário cÍ­vico. As suas raÍ­zes mergulham na BÍ­blia, fonte do monoteÍ­smo hebraico. Tal como a IlÍ­ada, o Antigo Testamento não é obra de um único autor. Sand define a BÍ­blia como «biblioteca extraordinária» que terá sido escrita entre os séculos VI e II antes da Nossa Era. O mito principia com a invenção do «povo sagrado» a quem foi anunciada a terra prometida de Canaã.

Carecem de qualquer fundamento histórico a interminável viagem de Moisés e do seu povo rumo Í  Terra Santa e a sua conquista posterior. Cabe lembrar que o actual território da Palestina era então parte integrante do Egipto faraónico.

A mitologia dos sucessivos exÍ­lios, difundida através dos séculos, acabou por ganhar a aparência de verdade histórica. Mas foi forjada a partir da BÍ­blia e ampliada pelos pioneiros do sionismo.

As expulsões em massa de judeus pelos AssÍ­rios são uma invencionice. Não há registo delas em fontes históricas credÍ­veis.
O grande exilio da Babilónia é tão falso como o das grandes diásporas. Quando Nabucodonosor tomou Jerusalém destruiu o Templo e expulsou da cidade um segmento das elites. Mas a Babilonia era há muito a cidade de residência, por opção própria, de uma numerosa comunidade judaica. Foi ela o núcleo da criatividade dos rabinos que falavam aramaico e introduziram importantes reformas na religião mosaica. Sublinhe-se que somente uma pequena minoria dessa comunidade voltou Í  Judeia quando o imperador persa Ciro conquistou Jerusalém no séc. VI antes da Nossa Era.

Quando os centros da cultura judaica de Babilonia se desagregaram, os judeus emigram para a Bagdad abássida e não para a «Terra Santa».
Sand dedica atenção especial aos «ExÍ­lios» como mitos fundadores da identidade étnica.

As duas «expulsões» dos judeus no perÍ­odo Romano, a primeira por Tito e a segunda por Adriano, que teriam sido o motor da grande diáspora, são tema de uma reflexão aprofundada pelo historiador israelense.

Os jovens judeus aprendem nas escolas que «a nação judaica» foi exilada pelos Romanos apos a destruição do II Templo por Tito em 70, e posteriormente, por Adriano, em 132. Por si só o texto fantasista de Flavius Joseph, testemunha da revolta dos zelotas, retira credibilidade a essa versão, hoje oficial.

Segundo ele, os romanos massacraram então 1 100 000 judeus e prenderam 97 000.Isso numa época em que a população total da Galileia era segundo os demógrafos atuais muito inferior a meio milhãoÂ…

As escavações arqueológicas das últimas décadas em Jerusalém e na Cisjordânia criaram aliás problemas insuperáveis aos universitários e teólogos sionistas que «explicam» a história do povo judeu tomando a Torah e a palavra dos Patriarcas como referências infalÍ­veis.
Os desmentidos da arqueologia perturbaram os historiadores. Ficou provado que Jericó era pouco mais do que uma aldeia sem as poderosas muralhas que a BÍ­blia cita. As revelações sobre as cidades de Canaã alarmaram também os rabinos. A arqueologia moderna sepultou o discurso da antropologia social religiosa.

Em Jerusalém não foram encontrados sequer vestÍ­gios das grandiosas construções que segundo o Livro a transformaram no seculo X, a época dourada de David e Salomão, na cidade monumental do «povo de Deus» que deslumbrava quantos a conheceram. Nem palácios nem muralhas, nem cerâmica de qualidade.

O desenvolvimento da tecnologia do carbono 14 permitiu uma conclusão. Os grandes edifÍ­cios da região Norte não foram construÍ­dos na época de Salomão, mas no perÍ­odo do reino de Israel.

«Não existe na realidade nenhum vestÍ­gio - escreve Shlomo Sand - da existência desse rei lendário cuja riqueza é descrita pela BÍ­blia em termos que fazem dele quase o equivalente dos poderosos reis da Babilonia e da Pérsia». «Se uma entidade polÍ­tica existiu na Judeia do seculo X antes da Nossa Era, acrescenta o historiador, somente poderia ser uma microrealeza tribal e Jerusalém apenas uma pequena cidade fortificada».
É também significativo que nenhum documento egÍ­pcio refira a «conquista» pelos judeus de Canaã, território que então pertencia ao faraó.

O SILENCIO SOBRE AS CONVERSÕES

A historiografia oficial israelense, ao erigir em dogma a pureza da raça, atribui a sucessivas diásporas a formação das comunidades judaicas em dezenas de paÍ­ses.

A Declaração de Independência de Israel afirma que, obrigados ao exilio, os judeus esforçaram-se ao longo dos seculos por regressar ao paÍ­s dos seus antepassados,
Trata-se de uma mentira que falsifica grosseiramente a História.

A grande diáspora é ficcional, como as demais. Apos a destruição de Jerusalém e a construção de Aelia Capitolina somente uma pequena minoria da população foi expulsa. A esmagadora maioria permaneceu no paÍ­s.

Qual a origem então dos antepassados de uns 12 milhões de judeus hoje existentes fora de Israel?

Na resposta a essa pergunta, o livro de Shlomo Sand destrói simultaneamente o mito da pureza da raça, isto é da etnicidade judaica.
Uma abundante documentação reunida por historiadores de prestÍ­gio mundial revela que nos primeiros séculos na Nossa Era houve maciças conversões ao judaÍ­smo na Europa, na Asia e na Africa.

Três delas foram particularmente importantes e incomodam os teólogos israelenses.

O Alcorão esclarece que Maomé encontrou em Medina, na fuga de Meca, grandes tribos judaicas com as quais entrou em conflito, acabando por expulsá-las. Mas não esclarece que no extremo Sul da PenÍ­nsula Arábica, no atual Iémen, o reino de Hymar adotou o judaÍ­smo como religião oficial. Cabe dizer que chegou para ficar. No seculo VII o Islão implantou-se na região, mas, transcorridos treze seculos, quando se formou o Estado de Israel, dezenas de milhares de iemenitas falavam o árabe, mas continuavam a professar a religião judaica. A maioria emigrou para Israel onde, aliás, é discriminada.

No Imperio Romano, o judaÍ­smo também criou raÍ­zes, mesmo na Itália. O tema mereceu a atenção do historiador DÍ­on Cassius e do poeta Juvenal.

Na Cirenaica, a revolta dos judeus da cidade de Cirene exigiu a mobilização de várias legiões para a combater.

Mas foi sobretudo no extremo ocidental da ́frica que houve conversões em massa Í  religião rabÍ­nica. Uma parcela ponderável das populações berberes aderiu ao judaÍ­smo e a elas se deve a sua introdução no Al Andalus.

Foram esses magrebinos que difundiram na PenÍ­nsula o judaÍ­smo, os pioneiros dos sefarditas que, apos a expulsão de Espanha e Portugal, se exilaram em diferentes paÍ­ses europeus, na Africa muçulmana e na Turquia.

Mais importante pelas suas consequências foi a conversão ao judaÍ­smo dos Khazars, um povo nómada turcófono, aparentado com os hunos, que, vindo do Altai, se fixou no seculo IV nas estepes do baixo Volga.

Os Khazars, que toleravam bem o cristianismo, construÍ­ram um poderoso estado judaico, aliado de Bizâncio nas lutas do Império Romano do Oriente contra os Persas Sassânidas.

Esse esquecido império medieval ocupava uma área enorme, do Volga Í  Crimeia e do Don ao atual Uzbequistão. Desapareceu da Historia no seculo XIII quando os Mongóis invadiram a Europa, destruindo tudo por onde passavam. Milhares de Khazars, fugindo das Hordas de Batu Khan, dispersaram-se pela Europa Oriental. A sua principal herança cultural foi inesperada. Grandes historiadores medievalistas como Renan e Marc Bloch identificam nos Kahzars os antepassados dos asquenazes cujas comunidades na Polonia, na Rússia e na Roménia viriam a desempenhar um papel fulcral na colonização judaica da Palestina.

UM ESTADO NEOFASCISTA

Segundo Nathan Birbaum,o intelectual judeu que inventou em 1891 o conceito de sionismo, é a biologia e não a lÍ­ngua e a cultura quem explica a formação das nações. Para ele, a raça é tudo. E o povo judeu teria sido quase o único a preservar a pureza do sangue através de milénios. Morreu sem compreender que essa tese racista, a prevalecer, apagaria o mito do povo sagrado eleito por Deus.
Porque os judeus são um povo filho de uma cadeia de mestiçagens. O que lhes confere uma identidade própria é uma cultura e a fidelidade a uma tradição religiosa enraizada na falsificação da Historia.
Nos passaportes do Estado Judaico de Israel não é aceite a na
cionalidade israelense. Os cidadãos de pleno direito escrevem «judeu». Os palestinos devem escrever «árabe», nacionalidade inexistente.

Ser cristão, budista, mazdeÍ­sta, muçulmano, ou hindu resulta de uma opção religiosa, não é nacionalidade. O judaÍ­smo também não é uma nacionalidade.

Em Israel não há casamento civil. Para os judeus, é obrigatório o casamento religioso, mesmo que sejam ateus.
Essa aberração é inseparável de muitas outras num Estado confessional, etnocracia liberal construÍ­da sobre mitos, um Estado que trocou o yiddish, falado pelos pioneiros do «regresso a Terra Santa», pelo sagrado hebraico dos rabinos, desconhecido do povo da Judeia que se expressava em aramaico, a lÍ­ngua em que a BÍ­blia foi redigida na Babilónia e não em Jerusalém.

O «Estado do Povo Judeu» assume-se como democrático. Mas a realidade nega a lei fundamental aprovada pelo Knesset. Não pode ser democrático um Estado que trata como párias de novo tipo 20 % da população do paÍ­s, um Estado nascido de monstruoso genocÍ­dio em terra alheia, um Estado cuja prática apresenta matizes neofascistas.

O livro de Shlalom Sand sobre a invenção do Povo Judeu é, além de um lúcido ensaio histórico, um ato de coragem. Aconselho a sua leitura a todos aqueles para quem o traçado da fronteira da opção de esquerda passa hoje pela solidariedade com o povo mártir da Palestina e a condenação do sionismo.
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Vila Nova de Gaia, 31 de Dezembro de 2012~

*Shlomo Sand, «Comment fut inventé le peuple juif» Flammarion, Paris 2010

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