“Uma parte da sociedade brasileira, mesmo com inclinação progressista, dá sinais de fadiga com a estratégia de mudanças sem rupturas. Há crescente mal-estar com uma equação de governabilidade que preserva as velhas instituições, depende de alianças com fatias da própria oligarquia para formar maioria parlamentar, abdica da disputa de valores e renuncia Í mobilização social como método de pressão. “Diante do clamor, o petismo pode rectificar sua estratégia e repactuar com a rebelião das ruas para aprofundar e acelerar reformas de base. Ou pagar o preço próprio das situações onde a esquerda e as ruas se divorciam”.
Um fantasma ronda o mundo petista. O da perplexidade. Apesar das importantes conquistas dos últimos dez anos e das pesquisas eleitorais favoráveis, a onda de protestos abala o principal partido da esquerda brasileira e aproxima-se do governo federal. Com o prefeito de São Paulo na berlinda e multidões de jovens nas ruas, tudo o que era sólido parece se desmanchar no ar.
Muitos se perguntam o porquê de tanta ira depois de uma década na qual a pobreza diminuiu, a renda foi melhor distribuÍda e chegou-se praticamente ao pleno emprego. É verdade que as manifestações estão gravitando, por ora, ao redor de uma agenda local. A revolta juvenil exige principalmente menores tarifas de transporte e direito de manifestação, contrapondo-se Í violência das polÍcias estaduais. Somente um autista polÍtico, no entanto, deixaria de perceber que uma nova situação se instaurou no paÍs.
Alguns petistas, estarrecidos, não hesitaram em vislumbrar, balançando o berço dos protestos, a mão peluda da direita, arrastando junto os infantes da ultra-esquerda. Mas a narrativa conspiratória não resistiu aos factos. Os centros de poder do conservadorismo – especialmente os veÍculos tradicionais de comunicação e o governo paulista – desencadearam reacção feroz contra a mobilização, que desaguou na repressão implacável da última quinta-feira.
A truculência policial serviu de condimento para a escalada de protestos e sua nacionalização. A defesa de um direito democrático fundamental, diante da qual vacilaram, nos primeiros momentos, tanto o ministro da Justiça quanto o prefeito paulistano, foi assumida com energia e radicalidade pela juventude das grandes metrópoles. Partidos e governos da direita foram os responsáveis pela escalada repressiva, mas tiveram a seu favor a tibieza de sectores da esquerda surpreendidos com fenómenos alheios a suas planilhas.
Parte do estado-maior reaccionário refez suas contas, emparelhando discurso para disputar a rebelião e voltá-la contra o governo federal, provisoriamente arquivando a opção da violência. Até o momento, colheram um rotundo fracasso. Não apenas as manifestações e lideranças resistiram a abraçar suas bandeiras como foram frequentes cartazes e palavras de ordem contra o governador Alckmin e a própria imprensa, especialmente a Rede Globo.
Mesmo os alvos escolhidos pelos segmentos mais radicalizados – o Palácio dos Bandeirantes em São Paulo, a Assembleia Legislativa no Rio, o Congresso Nacional em BrasÍlia – demonstram que os jovens não estão nas ruas a serviço da restauração antipetista. Tampouco parecem se sentir representados e incluÍdos, porém, no processo impulsionado a partir da vitória de Lula em 2002.
A imensa maioria dos manifestantes tinha abaixo de 25 anos, formada por filhos das camadas médias e também dos bairros periféricos. A julgar por suas palavras de ordem, cartazes e bandeiras, não estão contra as reformas empreendidas desde 2003. Mas querem mais, melhor e rápido.
Ninguém levantou a voz para criticar o bolsa-famÍlia, o crédito consignado ou o Prouni. Nenhuma faixa foi erguida para defender privatizações e outras polÍticas favoráveis aos interesses de mercado. Poucos eram os manifestantes que carregavam cartolinas contra o “mensalão” e a corrupção. A luta é pela ampliação de direitos polÍticos e sociais, demanda encarnada pela exigência de barateamento do transporte público.
Mas cansaram de esperar que estes avanços sejam patrocinados por governos e partidos, mesmo os de esquerda. Não parecem satisfeitos com a timidez e a lentidão para realizar novas reformas, mais audazes, que acelerem a melhoria de suas condições de vida. E resolveram, como ocorre em determinados momentos históricos, tomar a construção do futuro em suas próprias mãos.
A rejeição Í presença de bandeiras partidárias pode ser analisada pela óptica corriqueira, como rechaço a instrumentos de organização colectiva ou despolitização. Mas também caberia ser compreendida, ao lado de outros ingredientes, como simbolismo de quem, avesso Í s correntes conservadoras ou ao aparelhismo de pequenos grupos, não se sente cativado ou vocalizado no projecto liderado pelo PT.
Provavelmente não se trata apenas de uma questão económico-social, mas igualmente polÍtica. Uma parte da sociedade, mesmo com inclinação progressista, dá sinais de fadiga com a estratégia de mudanças sem rupturas. Há crescente mal-estar com uma equação de governabilidade que preserva as velhas instituições, depende de alianças com fatias da própria oligarquia para formar maioria parlamentar, abdica da disputa de valores e renuncia Í mobilização social como método de pressão.
Antes esse cansaço se restringia a pequenos cÍrculos de militantes mais enfezados. Afinal, muito pode ser feito mesmo sem reformas estruturais, a partir da reorientação do orçamento nacional, integrando dezenas de milhões Í cidadania e ampliando conquistas sociais. O fato é que esse cenário pode ter atingido seu tecto. E as ruas começam a gritar.
O movimento não é contra o PT, mas coloca a estratégia do partido e do governo em xeque. Há uma exigência de protagonismo popular e juvenil, explicitada nos últimos dias. A direcção partidária e o Palácio do Planalto estão dispostos a considerar essa mobilização um factor de poder e refazer suas conexões com estes movimentos, impulsionando sua ascensão para construir forças rumo a uma nova geração de reformas?
Esta e outras perguntas estão embutidas no alarme que a revolta do vinagre fez soar. Diante do clamor, o petismo pode rectificar sua estratégia e repactuar com a rebelião das ruas para aprofundar e acelerar reformas de base. Ou pagar o preço próprio das situações onde a esquerda e as ruas se divorciam.
*Breno Altman é jornalista e director editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel.