Vergonha*
As centenas de mortos de imigrantes clandestinos em Lampedusa juntam-se a outros 20 mil contados desde 1990. Gente que tenta chegar Í s costas europeias, fugindo da miséria, da perseguição, da guerra, ou simplesmente exercendo o seu direito de querer mudar de vida, exactamente como fizeram mais de cem milhões de europeus ao longo dos últimos 150 anos, milhões de portugueses incluÍdos. Miséria e conflitos pelos quais, recorde-se, vários paÍses europeus são co-responsáveis. Tal como a UE é, em última análise, co-responsável por estas mortes.
89 mortos. Fora os que estão no fundo do mar, provavelmente mais de cem. Gente de quem não se ouvirá falar mais, famÍlias e comunidades que deles nada mais saberão. 155 sobreviveram ao naufrágio de há uma semana. Todos recolhidos por pescadores que desafiaram a lei italiana: por o fazerem, podem ser acusados de “cumplicidade com imigração ilegal”. A polÍcia marÍtima vigiava sem tomar qualquer iniciativa de salvamento, por forma a não contrair obrigações legais para com um clandestino.
Os que se salvaram foram metidos dentro de um sobrelotado centro de acolhimento - que, de facto, é de detenção -, Í espera de serem deportados de volta a Ífrica. Roma recusa-se a dar seguimento aos pedidos da presidente da Câmara de Lampedusa, a pequena ilha do Canal da SicÍlia que separa as costas italianas das do Norte de Ífrica, para que estes desgraçados sejam transferidos para o continente. Todos os maiores de 14 anos, sem excepção, foram processados ao abrigo da lei italiana (comum a vários outros paÍses europeus: França, Grã-Bretanha, Alemanha, Grécia) que criminaliza a imigração clandestina. O mesmo pode acontecer aos pescadores. Nenhum processo foi aberto contra a polÍcia marÍtima por falta de empenho no salvamento.
Centenas de mortos que se juntam a outros 20 mil, contados desde 1990, cujos restos estão no fundo do Mediterrâneo. Gente que tenta chegar Í s costas europeias, fugindo da miséria, da perseguição, da guerra, ou simplesmente exercendo o seu direito de querer mudar de vida, exactamente como fizeram mais de cem milhões de europeus ao longo dos últimos 150 anos, incluÍdos milhões de portugueses. Miséria e conflitos dos quais, recorde-se, a Europa, vários paÍses europeus, é co-responsável.
Não só por causa da herança de cem anos de colonialismo de ocupação que, a favor dos interesses do colonizador, desestabilizou irreversivelmente sociedades e economias dos colonizados, mas muito mais directamente em consequência de relações económicas construÍdas sobre desigualdade radical na distribuição da riqueza produzida, vergonhosa sub-remuneração do trabalho, apropriação de recursos alheios que o capital europeu (e norte-americano, e japonês, e chinês} impõe em cada um dos seus investimentos por esse mundo fora, para os quais não há (nem nunca o capital os aceitaria) qualquer barreira ou muro armado como aqueles que os EUA levantaram na fronteira com o México, ou a UE nas suas fronteiras ao longo do Mediterrâneo, em Ceuta, na Grécia, em todos os aeroportos…
Tinham pago 1000Â5000 dólares Í cabeça para fazer uma viagem desesperada. Poupanças de vidas inteiras. Vinham da Etiópia, da Eritreia, da Somália, por acaso ex-colónias italianas, mas podiam vir, como vêm, da SÍria, do Egipto, do Iraque, do Afeganistão. Durão Barroso e CecÍlia Malmström, a comissária europeia de Assuntos Internos, atreveram-se a viajar ontem a Lampedusa, “no espÍrito de apoio e solidariedade europeia”. Como se não tivessem responsabilidade alguma.
Foram recebidos com gritos dos habitantes da ilha que lhes chamaram “Assassinos!” e lhes pediram que tivessem “Vergonha!”. Malmström reconheceu há dois anos que a Europa tinha “perdido uma oportunidade”, a da Primavera Írabe, para “mostrar que a UE está pronta a ajudar”, mas até hoje, como em bom cinismo se faz, não deu um passo para corrigir uma polÍtica de controlo da imigração que tem tudo de letal, na forma como criminaliza a clandestinidade (e, assim, ajuda ao racismo contra imigrantes legais e ciganos), que instrui as policias marÍtimas e a agência Frontex para impedir a passagem de barcos de clandestinos antes mesmo de verificarem haver um mÍnimo de segurança destes ou se empenharem na salvação de náufragos. Tudo é feito para impedir que estes barcos entrem sequer em águas territoriais de um paÍs europeu, dentro das quais deveriam ser assegurados aos imigrantes os direitos mÍnimos previstos na legislação quanto Í solicitação de asilo ou Í indagação de motivos legÍtimos de entrada em território europeu. Quanto se horrorizam os dirigentes europeus, e os do Ocidente em geral, como na SÍria, com guerras e ditaduras (quantas vezes armadas por eles próprios), lembrando-se apenas de um presumÍvel direito universal Í intervenção militar; mas esquecem-se tão descaradamente do dever de solidariedade, de ajuda! Como diz o papa Francisco, “ocorre-me uma só palavra: vergonha…”
Imigrantes linchados na Grécia por milÍcias neonazis, com polÍcias no meio delas; ministro socialista francês (Manuel Valls) que, como com Sarkozy expulsa, ciganos romenos e búlgaros, apesar de serem cidadãos comunitários; extrema-direita racista que entra em governos europeus (Itália, Hungria, Dinamarca, Noruega, Íustria, Holanda, Finlândia) apoiada numa xenofobia nauseabunda, a cheirar aos anos 30… Crise, empobrecimento, desigualdade, racismo, insolidariedade: uma previsÍvel e coerente fórmula de fim de democracia.
A presidente da Câmara de Lampedusa dizia a Letta, o PM italiano: “O mar está cheio de mortos. Venha cá ver o horror! Venha contar os mortos comigo!”. A Durão Barroso perguntara-lhe, há meses, “de que tamanho tem de ser o cemitério da minha ilha?” Na próxima campanha eleitoral de Barroso, Í Presidência da República, por exemplo, não se surpreenda se vir um fotograma dele em Lampedusa, em frente a centenas de caixões. Nessa altura, que pelo menos a memória disto tudo não lhe falte a si.
Que não nos falte a todos.
*Este artigo foi publicado no “Público”, 10.10.2013
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