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Tratados de Comércio Livre (TTIP e TPP): quem tira proveito da ira popular

Walden Bello*  :: 18.11.14

Walden BelloOs EUA negoceiam actualmente – em segredo - com a UE e com 11 paÍ­ses asiáticos dois tratados de “comércio livre”. O conteúdo negativo das intenções de tais tratados vai muito para além das questões económicas. Os seus aspectos geopolÍ­ticos e ideológicos definem um quadro de subordinação dos Estados Í  estratégia das principais potências imperialistas.

Em paralelo com o acordo comercial que actualmente discutem com a União Europeia (o TTIP), os EUA estão a negociar um acordo similar com 11 paÍ­ses da ́sia e do PacÍ­fico: o Acordo TransPacÍ­fico (Trans-Pacific Partnership -TPP). Walden Bello, um dos mais destacados crÍ­ticos da globalização neoliberal e empresarial, identifica qual é a estratégia global que sustenta os dois acordos. O jornalista e activista italiano Thomas Fazi entrevistou-o para a página Open Democracy.

Thomas Fazi: Hoje, os ‘acordos de comércio livreÂ’ bilaterais e regionais – ou melhor, os acordos mega-regionais, como o TTIP e o TPP – substituÍ­ram efectivamente as negociações no seio da OMC. ¿Entrámos em nova fase da globalização?

Walden Bello: Sim. Creio que a fase triunfalista da globalização, que teve o seu zénite na década de 90 e começou a decair logo após as mobilizações de Seattle em 1999, está definitivamente acabada. Hoje encontramo-nos numa situação em que a globalização impulsionada pelas grandes empresas e pelo neoliberalismo conduziu a uma crise de grande envergadura, e estão na defensiva. PoderÍ­amos dizer que o próprio conceito de globalização impulsionada pelas grandes empresas está em crise. A sua credibilidade viu-se gravemente afectada. Mas existem ainda, naturalmente, interesses muito fortes – apoiados pelas elites tecnocráticas e pela maior parte do mundo académico – que continuam promovendo soluções neoliberais, como o TTIP e o TPP.

¿Em que medida contribuiu o movimento antiglobalização e anti livre-comercio dos finais dos anos 90 e inÍ­cios de 2000 para socavar o paradigma de globalização impulsionada pelas grandes empresas?

Creio que o sucesso mais importante do movimento foi que representou um autêntico abalo para o triunfalismo e a credibilidade de todo o projecto de uma globalização impulsionada pelas grandes empresas. Seattle foi um acontecimento verdadeiramente histórico, em que a acção das pessoas nas ruas revelou por fim que o rei ia nu. Antes inclusivamente de Seattle estava já claro em muitÍ­ssimas estatÍ­sticas que a globalização estava conduzindo a uma maior pobreza e desigualdade e estava criando todo o tipo de ineficiências, mas de certo modo esta verdade não conseguia abrir caminho. Aquilo a que assistimos foi não apenas o derrubamento da OMC Í  escala mundial mas ao de todo el paradigma. Creio que este foi um sucesso claro do movimento antiglobalização: que mostrou realmente que existia um lado obscuro da globalização, que estava a criar o contrário daquilo que prometia.
A erosão da OMC foi fundamental, porque se supunha que seria um instrumento primordial da globalização. Estamos a falar do código legal comercial mais ambicioso da história, e esta arquitectura está agora em ponto morto.
Esta é a razão pela qual em anos recentes começaram a recuar para acordos de livre comércio (ALC) bilaterais e multilaterais. Mas os ALC – impulsionados primordialmente pela UE, os EUA e o Japão – são considerados por estes paÍ­ses como arranjos próprios de uma segunda melhor opção, resultante do fracasso na hora de alcançar o tipo de consenso universal que tinham procurado fazer funcionar no seio da OMC. Isto não significa subestimar a daninha repercussão de acordos como o TTIP e o TPP. Mas creio que são também muito frágeis. Basta ver a crescente oposição da sociedade civil ao TTIP na Europa, ou a resistência dos interesses do agribusiness ao TPP numa série de paÍ­ses asiáticos.

¿Quais são as semelhanças entre o TTIP e o TPP?

Os dois tratados são muito semelhantes. Em primeiro lugar, ambos estão a ser negociados em segredo; tal como declarou o antigo representante comercial norte-americano, Ron Kirk, se fossem negociados abertamente, não teriam a menor oportunidade de as pessoas os aprovarem. Em segundo lugar, não têm que ver tanto com o comércio, embora haja neles aspectos comerciais (como maiores reduções em aranceles); na realidade, têm que ver com a afirmação do controlo empresarial sobre qualquer aspecto das nossas vidas, por meio dos direitos de propriedade intelectual e as disposições investidores-Estado (as infames ISDS), nas quais os direitos soberanos dos estados se vêm basicamente subalternizados graças Í  possibilidade de serem judicialmente processados pelas grandes empresas.
Em terceiro lugar, ambos têm uma componente geopolÍ­tica: o TTIP é na realidade o braço económico da OTAN e tem claramente como objectivo conter a Rússia; o TPP, por outro lado, é evidentemente uma tentativa muito contundente de conter a China e de lhe criar na ́sia um bloco económico contrário.
Mais em geral, parece-me que está muito claro que entre os objectivos de ambos os projectos está o surgimento dos BRICS e os esforços que estão a ser levados a cabo por criar um bloco económico alternativo ao ocidental. Por último, creio que tanto o TTIP como o TPP têm em si uma componente ideológica, na medida em que se afirmam como representação dos ‘bonsÂ’ valores ocidentais – livre comercio, civilização, império da Lei, etc. – por oposição aos valores alheios do ‘outroÂ’.
Isto sublinha também a hipocrisia do discurso do ‘livre comércioÂ’: num quadro coerente de livre comercio, estes acordos deveriam estender-se também a paÍ­ses como Rússia e China. Mas está claro que não é esse o caso.

¿Seria correcto contemplar estes acordos – e especialmente o TPP – como formas de neocolonialismo ou neo-imperialismo, do mesmo estilo dos acordos de livre comércio impostos pelas nações hegemónicas aos paÍ­ses em desenvolvimento?

Considerando que o aspecto geopolÍ­tico é tão destacado em ambos – em ambos os casos não nos confrontamos com ‘simplesÂ’ acordos comerciais mas com tratados em que os aspectos polÍ­ticos e de segurança são pelo menos tão destacados como os aspectos económicos, poderia de facto dizer-se que há um elemento de neo-imperialismo em jogo. Há um claro esforço por parte das potências hegemónicas (os EUA e a Europa) para, por meio destes tratados, fortalecer e ampliar a sua esfera de influência e cortar pela raiz a ameaça que constituem estas forças que têm potencial para desalojar o protagonismo do Ocidente.

¿Está o TPP ligado Í  expansão militar norte-americana no PacÍ­fico?

Sim, totalmente. Do mesmo modo que se pode considerar o TTIP como braço económico da OTAN, o TPP está indubitavelmente vinculado Í  expansão militar norte-americana no PacÍ­fico e a toda a estratégia da ‘viragem para a ́siaÂ’, apontada fundamentalmente a conter a China. Neste sentido, estes acordos correm o risco de ter um grave efeito desestabilizador em termos geopolÍ­ticos.

¿Mencionaste a questão do secretismo, que é um dos aspectos mais controvertidos das negociações do TTIP. Sabemos que, no caso de Europa, frequentemente nem sequer os parlamentos têm conhecimento do que está em discussão, uma vez que a negociação se processa Í  escala da Comissão. ¿Como estão a desenvolver-se as negociações de ́sia-PacÍ­fico, onde os EUA não dispõem de um parceiro tão ‘privilegiadoÂ’?

O que está a suceder é que o acordo está a ser discutido pelos mais altos negociadores comerciais. E aÍ­ é outorgado Í s grandes empresas um acesso especial, mas o mesmo não é concedido aos cidadãos em geral nem tão pouco sequer aos parlamentos nacionais. De modo que basicamente os grupos de grandes negócios são os únicos que têm acesso. Isto é algo totalmente antidemocrático. Os parlamentos deveriam dispor deste acesso. A verdade é que me desconcerta muito porque é que isto não é denunciado, por que é que os parlamentos não levantam um desafio mais contundente a esta falta de transparência ou fazem uso das várias leis de informação destes paÍ­ses.
Creio que parte do problema reside em que os parlamentos da maioria dos paÍ­ses abrangidos por estes acordos estão dominados por partidos conservadores que são ideologicamente favoráveis ao neoliberalismo, estão vinculados ao capital empresarial e não valorizam la transparência. O mesmo pode dizer-se, evidentemente, da Europa.

Em anos recentes uma serie de paÍ­ses asiáticos de anterior influência europeia, – como os antigos ‘tigres asiáticosÂ’ – reagiram perante os desastrosos efeitos das ‘reformas estruturaisÂ’ impostas pelo FMI e o Banco Mundial prosseguindo medidas polÍ­ticas mais proteccionistas e fazendo ‘retrocederÂ’ parcialmente o processo de globalização. ¿Como está isto a influir nas negociações sobre o TPP, que vão em sentido contrario?

A globalização sempre se empenhou tenazmente na produção orientada para a exportação, mas a crise e a depressão a longo prazo nos EUA e Europa, que eram mercados centrais chave para as exportações asiáticas, obrigou muitos paÍ­ses asiáticos a reanalisar os modelos de economia polÍ­tica que estavam seguindo.
Creio que em muitos paÍ­ses se deram conta de que tinham que regressar a um crescimento interno orientado no sentido da procura, e que o que isso significa é evidentemente que, entre outras coisas, há que prestar verdadeira atenção ao mercado interno e a uma distribuição mais igualitária dos rendimentos.
E isso significou utilizar qualquer pequeno espaço polÍ­tico restante para impor restrições ao comércio, por meio de normativas sanitárias e de segurança, bem como aos fluxos financeiros, através de controlos de capitais (que até o FMI reconheceu serem eficazes para prevenir crises desestabilizadoras). Neste sentido, acordos como o TTIP e o TPP, que constituem uma tentativa de deter este processo de des-globalização, vão contra a corrente da história. O mesmo se pode dizer da estratégia neomercantilista dirigida pela Alemanha e prosseguida pela Europa.

Falando da Europa, os movimentos sociais de finais dos anos 90 e primeiros anos da década de 2000 tiveram êxito ao congregar centenas de milhares de pessoas contra a globalização neoliberal. Hoje em dia isto parece una façanha impossÍ­vel, embora o acordo que actualmente está a ser negociado, o TTIP, lese os cidadãos europeus e norte-americanos muito mais directamente do que anteriores acordos de livre comércio.
A dinâmica dos movimentos está estreitamente ligada Í  dinâmica contraditória da crise. Por exemplo, deverÍ­amos interrogar-nos por quê, no meio da crise, tantos paÍ­ses europeus se inclinaram para a direita.
Parece-me que isto demonstra que a crise traz consigo as suas próprias dimensões, que frequentemente retiram energia aos movimentos polÍ­ticos. Entretanto, os devastadores efeitos sociais de quatro anos de programas de austeridade na Europa estão a criar condições para o ressurgimento de um sólido movimento anti-neoliberal e contra as grandes empresas.
A questão é saber quem será capaz de aproveitar a ira popular, ¿a esquerda radical ou a direita populista? Lamentavelmente, esta última parece estar a ganhar vantagem neste momento concreto. Creio que a esquerda tem efectivamente que se mover com muita rapidez.

*Walden Bello representa o Akbayan (Partido da Acção Cidadã) no Parlamento das Filipinas e é autor ou co-autor de 19 livros. Os últimos são CapitalismÂ’s Last Stand? (London: Zed, 2013) e State of Fragmentation: the Philippines in Transition (Quezon City: Focus on the Global South and FES, 2014)

Fonte: http://www.sinpermiso.info/


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