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Bem-vindos Í  selva

Pepe Escobar* :: 05.11.18

«A refinada Guerra HÍ­brida em curso no Brasil, que começou em 2014, teve um ponto de inflexão em 2016 e culminou em 2018 com a destituição de uma presidente; a prisão de outro presidente; o esmagamento da Direita e do Centro-direita; e Í  moda de uma pós-polÍ­tica enlouquecida por esteróides, abriu o caminho para o fascismo.»

Jean Baudrillard definiu um dia o Brasil como “a clorofila do nosso planeta”. Contudo, um paÍ­s tão amplamente associado em todo o mundo com o poder suave de uma joie de vivre criativa acaba de eleger um fascista para presidente.

O Brasil é uma terra dilacerada. O antigo paraquedista Jair Bolsonaro foi eleito com 55,63% dos votos. Mas 31 milhões de votos foram de abstenção, ou brancos ou nulos, um autêntico recorde. Foram 46 milhões os brasileiros que votaram no candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, professor e antigo prefeito de São Paulo, uma das gigantescas metrópoles do Sul global. O facto impressionante é que mais de 76 milhões de brasileiros não votaram em Bolsonaro.

O seu primeiro discurso como presidente exalava o sentimento de uma guerra santa degradada feita por uma seita fundamentalista entrelaçada com uma vulgaridade omnipresente e a exortação a uma ditadura de inspiração divina, como via para uma nova Era de Ouro brasileira.

O sociólogo franco-brasileiro Michael Lowy descreveu o fenómeno Bolsonaro como uma “polÍ­tica patológica em grande escala”.

A sua ascensão foi facilitada por uma conjunção sem precedentes de factores tóxicos, como o enorme impacto social do crime no Brasil, que levou a uma crença generalizada na repressão violenta como única solução; a rejeição concertada do Partido dos Trabalhadores, catalisada pelo capital financeiro, pelos latifundiários, pela agro-indústria e pelos interesses oligárquicos; um tsunami evangélico; um sistema de “justiça” que historicamente favorece as classes superiores e encarnado por juÍ­zes e procuradores com “formação” financiada pelo Departamento de Estado, incluindo o conhecido Sérgio Moro, cujo firme objectivo, durante a alegada investigação Lava Jato, contra a corrupção, foi enviar Lula para a prisão; e a total aversão Í  democracia de amplos sectores das classes dirigentes brasileiras.

Isto tudo se vai amalgamando num choque radicalmente antipopular, “caÍ­do do céu”, neoliberal. Parafraseando Lenine, um caso de fascismo como a última fase do neoliberalismo. Afinal, quando um fascista vende um programa de “mercado livre”, todos os seus pecados lhe são perdoados.

O reinado da bancada BBBB

É impossÍ­vel compreender a ascensão do bolsonarismo fora do contexto da Guerra HÍ­brida, extremamente refinada, que foi desencadeada no Brasil pelos suspeitos do costume. A espionagem da NSA – desde a gigantesca petrolÍ­fera Petrobrás até ao telemóvel da então presidente Dilma Rousseff – já era conhecida desde meados de 2013, depois de Edward Snowden ter revelado que o Brasil era o paÍ­s mais espionado da América Latina.

A Escola Superior de Guerra no Rio de Janeiro, rendida ao Pentágono, sempre foi favorável a uma militarização gradual – mas ininterrupta – da polÍ­tica brasileira alinhada com os interesses de segurança nacional dos EUA. O programa das principais academias militares norte-americanas foi adoptado sem reservas pela Escola Superior de Guerra.

Os gestores do complexo industrial-militar-tecnológico do Brasil sobreviveram sem problemas Í  ditadura de 1964-1985. Aprenderam tudo sobre operações psicológicas com os franceses na Argélia e com os americanos no Vietname. Ao longo dos anos, evoluÍ­ram o seu conceito de inimigo interno; não apenas os proverbiais “comunistas”, mas a Esquerda no seu conjunto, assim como as amplas massas de brasileiros espoliados.

Isso levou Í  situação vigente de generais a ameaçar juÍ­zes se libertassem Lula. O vice-presidente de Bolsonaro, o generalito Hamilton Mourão, chegou a ameaçar com um golpe militar se não ganhassem. O próprio Bolsonaro disse que nunca “aceitaria” a derrota.

Esta militarização progressiva da polÍ­tica combina perfeitamente com o caricatural Congresso Brasileiro BBBB (Bala, Boi, BÍ­blia, Banco).

O Congresso está praticamente controlado por forças militares, policiais e paramilitares; pelo poderoso lobby da indústria agrÍ­cola e mineira, com o seu objectivo supremo de pilhar totalmente a floresta amazónica; pelas facções evangélicas e pelo capital da banca/finanças. Comparem isso com o facto de mais de metade dos senadores e um terço do Congresso enfrentarem processos criminais.

A campanha de Bolsonaro usou todos os truques conhecidos para fugir a qualquer possibilidade de um debate na TV, fiel Í  noção de que discutir polÍ­tica é para perdedores, especialmente quando não há nada a debater.

Afinal, o principal conselheiro económico de Bolsonaro, o boy de Chicago, Paulo Guedes – actualmente sob investigação acusado de fraude de seguros – já tinha prometido “curar” o Brasil, servindo-se dos feitiços de sempre: privatizar tudo; eliminar os gastos sociais; acabar com as leis laborais e o salário mÍ­nimo; deixar o lobby do Boi saquear a Amazónia; e aumentar as armas nas mãos dos cidadãos a um nÍ­vel superior ao estipulado pela Associação Nacional das Espingardas dos EUA.

Não admira que The Wall Street Journal tenha classificado Bolsonaro como um normal “populista conservador” e “drenador do pântano-Brasil”; esta designação esquece os factos e ignora que Bolsonaro é um polÍ­tico menor que só conseguiu aprovar dois projectos-lei em 27 apagados anos no Congresso.

Enviem-me um WhatsApp para a Terra Prometida

Embora as grandes massas, muito mal informadas, tenham progressivamente tomado consciência dos golpes sujos da enorme campanha manipuladora de Bolsonaro no WhatsApp – uma saga tropical pós-Cambridge Analytica; e apesar de Bolsonaro afirmar, em directo, que os adversários só teriam duas opções depois das eleições de domingo, a prisão ou o exÍ­lio, isso não foi suficiente para deter o Brasil duma marcha inexorável para uma distopia, uma Teocracia Evangélica das Bananas militarizada.

Em qualquer democracia madura, um grupo de empresários – com contabilidade clandestina – que financiasse uma campanha de notÍ­cias falsas no WhatsApp, com múltiplos tentáculos, contra o Partido dos Trabalhadores e contra Haddad, o candidato de Lula, seria considerado um enorme escândalo.

O WhatsApp é extremamente popular no Brasil, muito mais do que o Facebook; por isso tinha que ser devidamente instrumentalizado nesta mistura brasileira de Guerra HÍ­brida ao estilo da Cambridge Analytica.

A táctica foi totalmente ilegal porque foi financiada por doações Í  campanha, não declaradas, assim como doações de empresas (proibidas pelo Supremo Tribunal do Brasil desde 2015). A PolÍ­cia Federal do Brasil iniciou uma investigação que terá o mesmo destino da investigação que os árabes sauditas fizeram a si mesmos no fiasco da Pulp Fiction em Istambul.

O tsunami de notÍ­cias falsas foi gerido pelos chamados bolsominions . São um exército voluntário de super-leais, que castigam quem quer que se atreva a pôr em causa o “Mito” (é assim que se referem ao lÍ­der), enquanto manipulam sem interrupção conteúdos em memes, vÍ­deos falsos virais e variadas expressões de ira do “enxame Bolso”.

Imaginem o escândalo de Washington se os russos interferissem nas eleições norte-americanos usando as mesmas tácticas que os EUA e as suas elites compradoras usaram no Brasil.

Esmagar o BRICS

Na polÍ­tica externa, naquilo que respeita a Washington, o Reichskommissar Bolsonaro pode ser muito útil em três frentes.

A primeira é a frente geoeconómica: obter a parte de leão das enormes reservas de petróleo das camadas pré-sal para os gigantes energéticos dos EUA.

Seria esse o requisito na sequência do golpe de misericórdia contra Dilma Rousseff, em 2013, quando ela aprovou uma lei destinando 75% das royalties do petróleo para o ensino e 25% para a assistência Í  saúde; uns significativos 122 mil milhões de dólares americanos ao longo de dez anos.

As duas outras frentes são geopolÍ­ticas: rebentar com o BRICS por dentro e levar o Brasil a fazer o trabalho sujo numa operação de mudança de regime na Venezuela, cumprindo assim a obsessão de Washington em esmagar o eixo Venezuela-Cuba.

Usando o pretexto da imigração em massa da Venezuela para a faixa brasileira da Amazónia, a Colômbia – elevada ao estatuto de parceiro fundamental da NATO e apadrinhada por Washington – pode contar com o apoio militar do Brasil para uma mudança de regime.

Depois, há a história importantÍ­ssima da China

A China e o Brasil são estreitos parceiros no BRICS. A propósito, o BRICS fica agora reduzido a RC (a Rússia e a China), com grande desgosto de Moscovo e de Pequim, que contavam que Haddad seguisse as pisadas de Lula, que foi fundamental no reforço do peso geopolÍ­tico do BRICS.

Chegamos assim a um ponto de inflexão fundamental no golpe da Guerra HÍ­brida em curso, quando os militares brasileiros se convenceram de que o gabinete de Rousseff estava infiltrado de agentes dos serviços secretos chineses.

Apesar disso, a China mantém-se o principal parceiro comercial do Brasil – Í  frente dos EUA, com um comércio bilateral que atingiu 75 mil milhões de dólares no ano passado. Além de ser um consumidor ávido de bens brasileiros, Pequim já investiu 124 mil milhões de dólares em empresas brasileiras e em projectos de infra-estruturas desde 2003.

Guedes, o boy de Chicago, reuniu-se recentemente com diplomatas chineses. Bolsonaro vai receber uma delegação chinesa de alto nÍ­vel, logo no inÍ­cio do seu mandato. Durante a campanha, repetiu várias vezes que “a China não está a comprar no Brasil, a China está a comprar o Brasil”. Bolsonaro pode tentar um surto de sanções contra a China Í  moda mini-Trump. Mas tem que ter em atenção que o poderoso lobby da agro-indústria tem lucrado imenso com a guerra comercial entre os EUA e a China.

É garantido um enorme suspense na cimeira do BRICS em 2019, que se realizará no Brasil: imaginem um Bolsonaro durão frente a frente com o verdadeiro patrão, Xi Jinping.

Então o que pretendem realmente os militares brasileiros? Resposta: a “Doutrina de Dependência” brasileira – que é uma verdadeira mestiçagem neocolonial.

A certo nÍ­vel, a liderança militar brasileira é desenvolvimentista, orientada para a integração territorial, fronteiras bem patrulhadas e uma “ordem” interna, social e económica, perfeitamente disciplinada. Simultaneamente acredita que tudo isso deve ser feito sob a supervisão da “nação indispensável”.

Os lÍ­deres militares consideram que o seu paÍ­s não tem conhecimentos suficientes para lutar contra o crime organizado, para defender a segurança cibernética e a segurança biológica e, no que se refere Í  economia, para dominar totalmente um estado mÍ­nimo, aliado a uma reforma fiscal e Í  austeridade. Para o geral da elite militar, o capital privado estrangeiro é sempre uma benesse.

Uma consequência inevitável disso é ver os paÍ­ses latino-americanos e africanos como untermenschen [seres inferiores – N.T.]: uma reacção contra a ênfase de Lula e de Dilma na União das Nações Sul-Americanas (UNASUR) e numa integração energética e logÍ­stica mais estreita com ́frica.

Não se pode descartar um golpe militar

Apesar disso, há dissidência militar interna – que pode abrir uma via para a remoção de Bolsonaro, um mero fantoche, em benefÍ­cio duma coisa real: um general.

Quando o Partido dos Trabalhadores estava no poder, a Marinha e a Força Aérea ficaram muito satisfeitas com projectos estratégicos como um submarino nuclear, um jacto supersónico e satélites lançados por foguetes made in Brasil. Veremos qual será a sua reacção no caso de Bolsonaro abandonar totalmente estes avanços tecnológicos.

O problema fundamental pode vir a ser se há uma ligação directa entre a nata das academias militares brasileiras; os “generais dependentistas” e as suas técnicas de operações psicológicas; as diversas facções evangélicas; e as tácticas pós-Cambridge Analytica de que a campanha Bolsonaro se serviu. Será uma nebulosa que congrega todas estas células ou será uma rede frouxa?

A melhor resposta provém de Piero Leirner , especialista em antropologia da guerra, que realizou uma profunda investigação nas Forças Armadas brasileiras e me disse: “Não há uma relação prévia. Bolsonaro é um pós-facto. A única ligação possÍ­vel é entre determinadas caracterÍ­sticas da campanha e as operações psicológicas (psyops) “. Leirner sublinha: “A Cambridge Analytica e Bannon representam a infra-estrutura, mas a qualidade de informações – enviar sinais contraditórios e depois aparecer uma resolução como terceira via, isso é uma estratégia militar dos manuais de operações psicológicas da CIA”.

Mas há brechas. Leirner considera o arco de forças dÍ­spares que sustentam Bolsonaro como uma “bricolagem” que, mais tarde ou mais cedo, se desintegrará. E a seguir? Um general sub-Pinochet?

Bolsonaro não é Trump. Porquê?

Em The Road to Somewhere; The Populist Revolt and the Future of Politics , David Goodhart mostra que a força motora por detrás do populismo não é o amor fascista duma nação radical. É a anomia – um sentimento duma vaga ameaça existencial que a modernidade coloca. Isso aplica-se a todas as formas de populismo de direita no Ocidente.

Assim, temos a oposição entre “alguns locais” e “quaisquer locais”. Temos “alguns locais” que querem que a democracia da nação seja confinada apenas Í s etnias nacionais, sem que a cultura nacional seja contaminada por influências “estrangeiras”.

E temos “quaisquer locais” que habitam o vórtice pós-moderno, sem raÍ­zes, do multiculturalismo e das viagens internacionais de negócios. Estes são uma minoria demográfica – mas uma maioria nas elites polÍ­ticas, económicas, educativas e profissionais.

Isso leva Goodhart a fazer uma distinção fundamental entre populismo e fascismo – ideológica e psicologicamente.

A distinção legal comum encontra-se na lei constitucional alemã. O populismo de direita é “radical” – portanto, é legal. O fascismo é “extremo”, portanto é ilegal.

É errado rotular Trump de “fascista”. Bolsonaro foi rotulado pelo Ocidente de “o Trump tropical”. O facto é que Trump é um populista de direita – até com algumas polÍ­ticas que poderão ser caracterizadas como de Velha Esquerda.

Os registos revelam Bolsonaro como um tipo racista, misógino, homofóbico, defensor das armas, favorecendo um Brasil branco, patriarcal, hierárquico, hetero-normativo e “homogéneo”; um absurdo numa sociedade profundamente desigual, ainda devastada pelos efeitos da escravatura e em que a maioria da população é de raça mista. Além disso, historicamente, o fascismo é uma Solução Final burguesa radical com vista Í  aniquilação total da classe trabalhadora. Isso torna Bolsonaro um fascista total.

Trump ainda é mais moderado do que Bolsonaro. Não incita os seus apoiantes a exterminar literalmente os seus opositores. Afinal, Trump tem que respeitar o enquadramento duma república com instituições democráticas muito antigas, mesmo que defeituosas.

Isso nunca aconteceu com a jovem democracia brasileira – em que um presidente pode comportar-se como se os direitos humanos fossem uma conspiração comunista em conluio com a ONU. As classes trabalhadoras brasileiras, as elites intelectuais, os movimentos sociais e todas as minorias têm toda a razão para recear a Nova Ordem. Nas palavras de Bolsonaro, “serão banidos da nossa pátria”. A criminalização/desumanização de qualquer oposição significa, literalmente, que dezenas de milhões de brasileiros não valem nada.

Falem com Nietzsche

A refinada Guerra HÍ­brida em curso no Brasil, que começou em 2014, teve um ponto de inflexão em 2016 e culminou em 2018 com a destituição de uma presidente; a prisão de outro presidente; o esmagamento da Direita e do Centro-direita; e Í  moda de uma pós-polÍ­tica enlouquecida por esteróides, abriu o caminho para o fascismo.

Mas Bolsonaro é um vazio medÍ­ocre. Não tem a estrutura polÍ­tica, os conhecimentos, para não falar da inteligência em ter chegado tão longe, a partir do nada, sem um sistema de apoio de informações super-complexo, de alta tecnologia, transfronteiras. Não admira que seja um queridinho de Steve Bannon.

Em contraste, a Esquerda – tal como na Europa – mais uma vez ficou presa no modo analógico. De modo algum qualquer frente progressista, especialmente neste caso tal como foi constituÍ­da na décima primeira hora, podia combater com êxito o tsunami tóxico da guerra cultural, da polÍ­tica de identidade e das notÍ­cias falsas micro-dirigidas.

A Esquerda perdeu a batalha importante. Pelo menos, agora já sabem que isto é a doer, uma guerra total. Para destruir Lula – o prisioneiro polÍ­tico mais importante do mundo – as elites brasileiras tiveram que destruir o Brasil. Nietzsche continua a vencer; o que não nos mata torna-nos mais fortes. A vanguarda da resistência global contra o neofascismo como o estádio mais avançado do neoliberalismo mudou-se para sul do Equador. No pasarán.
* Jornalista brasileiro, correspondente do Asia Times com sede em Hong-Kong. O seu último livro é 2030 .

O original encontra-se em Consortium News . Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


https://www.odiario.info