ODiario.info

Imprimir

Uma moral de pós-guerra

Manuel Loff :: 31.12.18

É muito mau sinal que se vulgarize um discurso hostil Í s lutas dos trabalhadores, e em particular Í s suas formas superiores de luta. Pior ainda é ver-se tal discurso reproduzido por figuras do actual governo. A ideia de que “todos sofremos com as medidas da troika” é tão falsa como tendencialmente reaccionária. Não só os sacrifÍ­cios não foram para todos como quem o afirma se coloca, saiba-o ou não, ao lado dos que não só nada sofreram como tiraram vantagem do discurso e da prática da “austeridade”.

Manhã de quinta-feira. Na Antena 1, sucedem-se as vozes comentando o veto presidencial ao decreto do Governo que pretende impor Í s/aos educadoras/es e professoras/es dos ensinos básico e secundário que esqueçam sete anos das suas vidas profissionais para efeitos de progressão na carreira e com as óbvias consequências na sua reforma. Um antigo operário têxtil da Beira Interior emociona-se ao falar dos seus muitos anos de desemprego, de “quanto sofremos” nos anos da troika “para lutarmos por este paÍ­s, de quanto nos sacrificámos, nós e os nossos filhos, para levarmos este paÍ­s para diante”, indignado com os “privilégios” que, em sua opinião, os professores querem obter: “E a nós, que nunca fizemos uma greve, que trabalhámos até deixarmos de poder, quem nos devolve o emprego que perdemos, os salários que nos cortaram?” Ninguém. Nem a ele, nem Í s centenas de milhares que nos anos da devastação social foram despojados de emprego, salários e, em grande medida, dignidade. Nem aos professores, nem ao conjunto dos funcionários públicos, já agora: em 2014, tinham perdido 24% do poder de compra que tinham em 2010; e nenhum governo dos que temos tido lhes vai devolver os milhares de milhões de euros que, sob a forma de salários, lhes foram retirados. Só nos quatro anos de Governo Passos a redução do número de funcionários públicos (todo o tipo de contratos, incluindo os precários) foi de quase 80 mil, 11% do total. Entre eles, 29 mil professores (17,4% do total). É totalmente excepcional que, na história contemporânea, em perÍ­odo tão curto de tempo, reduções nos efetivos do Estado se façam a este ritmo.

Creio que muitos de nós ainda não se deram conta do que significaram os anos da troika. Habituados a ouvir falar de economia através de uma desfocada lente macro, traduzimos o discurso da recuperação económica numa genérica sensação de alÍ­vio, como se pudéssemos, por fim, retomar uma vida, já de si precária, subitamente interrompida há dez anos, como se tivéssemos passado por uma guerra e agora nos devêssemos concentrar na reconstrução. Essa, aliás, foi uma das imagens que Passos Coelho escolheu, no Natal de 2014, para descrever o que então vivÍ­amos, convidando-nos a aprender com o exemplo dos combatentes da Guerra Colonial, “servindo a pátria de forma absoluta”! É de uma moral assim que surgem estes discursos contra os direitos dos professores, uma moral de pós-guerra: todos perdemos, ninguém pode recuperar o que perdeu; se o fizesse, trairia a comunidade dos magoados, como se esta se tivesse constituÍ­do em torno de um pacto de sacrifÍ­cio que todos assumimos! Ora, nem é verdade que todos tenham perdido (a concentração de rendimentos nos mais ricos aÍ­ está para o comprovar), muito menos que todos tenhamos assinado um pacto de sacrifÍ­cio económico e social que nenhum governo, nenhuma troika, nenhum patrão negociou connosco, estabelecendo responsabilidades, fixando partilha de sacrifÍ­cios, preservando os que, de tanto se terem sacrificado antes, não deveriam contribuir para este novo esforço.

Não me surpreende ver esta moral reproduzida por quem incorporou hierarquias sociais e naturalizou desigualdades (“o mundo é assim, não vai mudar”) e, por isso, desconfia sempre de quem se organiza para as denunciar. Nesta moral, é quem não faz greve e aceita sacrifÍ­cios que deve ser premiado e não “os criminosos” que as fazem, como lhe saiu Í  ministra da Saúde. O que me indigna é que também neste Governo haja quem “criminalize” a essência da democracia que é o direito a resistir Í  injustiça e a reivindicar os seus direitos, quem desvirtue completamente o exercÍ­cio do direito Í  greve e sacuda para cima do grevista responsabilidades que são suas enquanto poder que não negoceia, recuperando assim o pior de 200 anos de intimidação do trabalhador que não se cala perante a injustiça. “O sistema económico actual” — o velho capitalismo tomado pela “meritocracia neoliberal” — “está a trazer Í  tona o pior de nós”, escreveu há anos o psicólogo social Paul Verhaeghe. Num mundo em que os trabalhadores são “infantilizados” (perdendo autonomia, responsabilizados pelos fracassos), “a solidariedade torna-se um luxo demasiado caro”. “Para os que acreditam na fábula de que dispomos de uma irrestrita possibilidade de escolha” neste padrão de relações sociais, “a liberdade que julgamos existir no Ocidente é a maior inverdade dos nossos dias e da nossa era”.

Fonte: Jornal “Público”, 29.12,2018


https://www.odiario.info