«Ao que parece, está montado um sistema de contratação, por entidades estranhas ao jornalismo, de jornalistas que estejam a trabalhar em redações para impingir nos seus jornais, rádios ou televisões matérias que, embora sejam baseadas na realidade (ninguém pediu para mentir), fossem capazes de alterar a linha editorial desses órgãos de informação.» Uma gravÍssima constatação, tanto mais grave se se pensar que não será apenas o tema covid-19 a ser alvo de tais manobras de manipulação.
Um dos anúncios está titulado assim: “Procuro ENTREVISTADOR/REPÓRTER”. A seguir, vem o texto: “Assegurar a elaboração de reportagens, entrevistas, num tema especÍfico relacionado com saúde, desenvolvendo investigação, reportagens e entrevistas.” São pedidas: carteira profissional de jornalista, licenciatura ou mestrado na área, competências vÍdeo, capacidade de análise e comentário e, ainda, “seleção, revisão e preparo definitivo das matérias jornalÍsticas a serem divulgadas”.
Um amigo meu (juro que não fui eu) que está a ver se melhora de vida viu isto na rede social Linkedln, clicou no link para responder e acabou por ver agendada uma entrevista por computador, através da aplicação de videoconferência Zoom. Mais tarde encontrou mais dois anúncios parecidos e voltou a inscrever-se para as respetivas entrevistas. Chegado o momento das três entrevistas, e após as três conversas por Zoom, todas semelhantes na essência, o meu amigo ficou a saber várias coisas que não vinham nos anúncios.
Passo a listar: 1— as matérias que se pretendiam elaborar eram relativas Í pandemia provocada pela covid-19; 2 — o jornalista deveria focar os seus trabalhos na contabilização de números de mortos, número de infetados e nÍveis de contágio; 3 — esses trabalhos também poderiam abarcar os números relativos a contágios em lares, procurar “mortes inexplicadas” e evolução das taxas de mortalidade; 4—também era possÍvel focar os trabalhos no papel dos hospitais privados na covid-19, o número de hospitais envolvidos, os custos do combate Í pandemia para os privados; 5 — era importante que esse meu amigo trabalhasse numa redação de um órgão de comunicação social de difusão nacional e tivesse poder para publicar propostas de trabalho suas; 6 — quando tivesse a reportagem especÍfica combinada com o recrutador, o jornalista deveria propor esse trabalho na sua redação como sendo uma ideia sua. Caso conseguisse publicar, nos moldes combinados, seria remunerado por isso; 7— quantas mais reportagens conseguisse publicar, melhor.
Quando o meu amigo perguntou pelo cliente — os entrevistadores eram de agências de “caça-talentos” —, as respostas foram evasivas, embora um deles deixasse escapar um vago “um grupo privado do norte”… Quando, finalmente, o meu amigo argumentou que aquilo que eles estavam a propor era capaz de ser ilegal, recebeu em resposta algo como isto: “A sério?! Olhe que há muitos colegas seus que o fazem!…”
Portanto, ao que parece, está montado um sistema de contratação, por entidades estranhas ao jornalismo, de jornalistas que estejam a trabalhar em redações para impingir nos seus jornais, rádios ou televisões matérias que, embora sejam baseadas na realidade (ninguém pediu para mentir), fossem capazes de alterar a linha editorial desses órgãos de informação. Quem decide os destaques, os alinhamentos e as dimensões dessas peças, os editores e diretores de cada uma dessas marcas, e recebe propostas desses colegas “comprados” pensa que essas ideias para artigos resultam da pura investigação jornalÍstica, não de “encomendas” de interesses estranhos ao jornalismo, e terá tendência a valorizá-las segundo um critério jornalistico.
Nada me espantaria que, dessa forma, muitas destas “encomendas” acabassem por ser manchete ou abertura de noticiário, causassem impacto público relevante, fossem comentadas e analisadas por lideres de opinião e, portanto, acabassem por distorcer na opinião pública a visão dessa realidade. Desde que esse meu amigo me contou o que se passou com ele, sempre que vejo uma notÍcia sobre a covid-19 fico desconfiado: “Será mesmo assim ou isto foi uma encomenda?”
E quando constato a grande quantidade de peças que estão dentro da área de interesses destes “recrutadores de jornalistas”, quando vejo que essas peças se repetem no foco e na mensagem, exageradamente, nos últimos meses, fico espantado com a minha ingenuidade estúpida: “Como é possÍvel eu ter achado que isto era, apenas, um exercÍcio editorial insensato e incompetente, mas genuÍno?” A seguir vem o desgosto: “Como é que a minha profissão chegou a este ponto!?” Esse meu amigo pede-me anonimato… OK. Mesmo assim, correndo o risco de ficar a protestar sozinho como os malucos, acho que vale a pena denunciar isto.
Fonte: DN, 3.03.2021