«O percurso de Sócrates é tÃpico daqueles dirigentes polÃticos que, sem origem em berço de ouro, tudo fazem para obrigar os ricos a precisar deles, sem pôr minimamente em causa as normas intrÃnsecas do sistema que os faz ricos. Ao contrário do que quis dizer com a sua bem conhecida petulância, Sócrates não os venceu: imitou-os, enchendo-se “daquilo de que eu gosto muitoâ€Â»
Foi “uma alegre sexta-feira para André Venturaâ€, como lhe chamou nestas páginas Ana Sá Lopes. É claro que muita água passará por debaixo das pontes da Justiça até que saiam sentenças definitivas, mas é óbvio que a também alegre sexta-feira que tiveram Sócrates, Salgado, Granadeiro e Bava vai ter consequências (veremos se passageiras; eu duvido) no agravamento da crise de legitimidade do nosso sistema democrático. A perceção cada vez mais negativa que dele tem uma grande parte da sociedade atinge nÃveis muito perigosos, especialmente no contexto depressivo e ansiógeno que a pandemia instalou por muito tempo. O que me interessa aqui discutir não é o peculiar modelo explicativo da realidade que Ivo Rosa adotou, mas sim como o caso Sócrates demonstra à saciedade, histórica e politicamente, o processo de reoligarquização do sistema polÃtico português que o cavaquismo (1985-95) iniciou, o guterrismo (1995-2002) prosseguiu e que os governos da financeirização da economia consolidaram (Durão, Santana, Sócrates e Passos).
Ela foi (e é) caracterizada por aquilo que se descreve como a “integração sistémica†entre governantes e mundo dos negócios, pela “promoção de uma meteórica mobilidade social ascendente†que se verifica sempre que “a passagem pelo governo se torna [um] momento de trânsito social e de classe†(Jorge Costa e outros, Os Donos de Portugal. Cem Anos de Poder Económico (1910-2010), 2010).
O desmantelamento, a partir dos anos 80, do modelo económico democratizador que a Revolução tinha construÃdo (gestão pública dos serviços e dos setores essenciais da economia, a começar pela banca) foi protagonizado por polÃticos profissionais que, militando nos partidos do poder (PSD, PS, CDS), organizaram a reconfiguração das elites económicas portuguesas, recompondo os velhos grupos económicos (os 7 MagnÃficos do salazarismo) e rearticulando-os com os novos (Amorim, Sonae) e com o capital internacional.
Pelo meio, imitaram os liberais do séc. XIX e os salazaristas do séc. XX: desenharam um lugar para si, fazendo-se cooptar pela elite dos mais ricos do paÃs. Na entrevista de 2013 a Clara Ferreira Alves, no Expresso, Sócrates queixava-se dos “tiques da oligarquia†com que se teria defrontado quando chegou a ministro, assumidos por uns “gajos que se achavam a aristocraciaâ€. “[E que] pensavam que eu tinha de ir lá pedir, pedir se podia, pedir autorizações. E eu pensei: ‘Raios vos partam, vou vencer-vos a todos!’ E foi o que fiz!â€
Para lá da evidente semelhança com a retórica de Cavaco, o percurso de Sócrates é tÃpico daqueles dirigentes polÃticos que, sem origem em berço de ouro, tudo fazem para obrigar os ricos a precisar deles, sem pôr minimamente em causa as normas intrÃnsecas do sistema que os faz ricos. Ao contrário do que quis dizer com a sua bem conhecida petulância, Sócrates não os venceu: imitou-os, enchendo-se “daquilo de que eu gosto muitoâ€. Tudo isto foi possÃvel, e pode voltar a sê-lo, porque “os governos são cruciais para o êxito dos mercados [capitalistas] de muitas maneiras: porque fazem possÃveis ou impossÃveis os monopólios relativos, porque são compradores em grande escala (…) e porque manipulam as decisões macroeconómicasâ€. Para conseguir o seu controlo, e “como os polÃticos devem dar prioridade à sua subida ou à sua permanência no poder e têm grandes necessidades financeiras, não há um só capitalista que possa ignorar esta óbvia fonte de pressão sobre os governos (…). Por consequência, a corrupção é absolutamente normal e inextrincável da atual vida polÃtica da economia-mundo capitalista†(Immanuel Wallerstein, La Decadencia del Imperio, 2004). Depois de se descrever como “o chefe democrático que a direita sempre quis ter!†(Expresso-Revista, 13/10/2013), o egocêntrico Sócrates vem agora fazer-se de alvo prioritário do “primeiro partido da extrema-direita no Portugal democrático†— não só já outros houve antes deste, como nunca se viu Sócrates preocupado com a extrema-direita quando estava no governo. Segundo ele, o Chega teria visto no processo que lhe é movido “a oportunidade para julgar o regime e a democracia — afinal de contas era um antigo primeiro-ministro acusado de corrupção†(PÚBLICO, 12/4/2021). Nisso tem ele razão. Se a Justiça não o condenar, a História julgá-lo-á por ter contribuÃdo como poucos para o avanço do neofascismo em Portugal.
Fonte: “Públicoâ€, 13.04.2021