Gramsci, a sociedade civil e os grupos subalternos

Isabel Monal *    16.Nov.06    Colaboradores

Isabel Monal
“Há que fazer com Gramsci, em muitos sentidos, algo de semelhante ao que ele próprio levou a cabo com Marx e Lenine, ao desenvolver o seu pensamento revolucionário ante as novas condições, sem abandonar aquela sua divisa de que o marxismo é uma concepção que se basta a si própria; divisa que, nunca é demais esclarecê-lo, haveria por sua vez de entendê-la no seu sentido dialéctico e não dogmático”

Gramsci é, sem dúvida, um clássico do pensamento polÍ­tico, particularmente um clássico do marxismo. Essa categoria excepcional na história do pensamento, só se atinge quando se é capaz de falar, ao mesmo tempo, para o seu tempo e para além dele, para o futuro; uma dupla dimensão difÍ­cil articulação. Mas Gramsci, há que enfatizá-lo bem, é um clássico de certo tipo: é um clássico revolucionário. Claro que o é do pensamento em geral, mas o seu labor e a sua contribuição dá-se plenamente no marxismo e na luta polÍ­tica e ideológica pela transformação revolucionária. Por isso ele é um clássico do movimento revolucionário e da revolução socialista/comunista em geral. Definido deste modo, não o podemos tratar nem compreender no quadro habitual do clássico tradicional. Então, do que se trata, entre outras coisas, é de revelar e expor quão útil ou válido pode e deve ser Gramsci nas lutas revolucionárias de hoje. Não é a questão, mas o seu contrário, criar uma espécie de nova ortodoxia, gramsciana na ocorrência – o que seria bem antigramsciano –, mas partindo dele, que se adeqúem e adaptem as suas contribuições ao marxismo e ao leninismo nas novas circunstâncias inéditas do devir histórico. Na realidade, o estudo e o encarar os problemas do mundo de hoje conduzem a pôr em evidência o muito de valioso e actual que há no dirigente italiano.

Trata-se de em Gramsci haver um desenvolvimento e enriquecimento do marxismo que nos permite pensar nos problemas do mundo de hoje tendo em conta as suas contribuições. Isto é, de como podem contribuir as suas análises e desenvolvimentos teóricos e metodológicos de forma directa e indirecta para elucidar muitas das questões contemporâneas. Como usar Gramsci e torná-lo politicamente útil, tanto no processo de maturação e preparação das subversões que se avizinham como na sua própria realização, isto é, conduzi-la e canalizá-la para o êxito. O que aqui se coloca não se limita a uma utilização ou adaptação a realidades nacionais, mas também Í  nova realidade internacional das mundializações múltiplas e da erupção de uma rica variedade de movimentos sociais no panorama social e polÍ­tico. Apelar ao pensador italiano no desentranhar dos novos métodos e articulações, que se foram tecendo num mundo cada vez mais interdependente, resulta num exercÍ­cio promissor e, em certo sentido, de proveito imediato. Há que fazer com Gramsci, em muitos sentidos, algo de semelhante ao que ele próprio levou a cabo com Marx e Lenine, ao desenvolver o seu pensamento revolucionário ante as novas condições, sem abandonar aquela sua divisa de que o marxismo é uma concepção que se basta a si própria; divisa que, nunca é demais esclarecê-lo, haveria por sua vez de entendê-la no seu sentido dialéctico e não dogmático.

Sem dúvida, a Gramsci interessou-lhe de modo particular a questão da revolução no Ocidente, mas as concepções por ele desenvolvidas têm validade e aplicação também a outras realidades e latitudes. Só as visões superficiais veriam nele, como já viram em Marx, uma concepção estritamente eurocêntrica. O método correcto consistiria em confrontar as suas teses e análises com outras realidades para confirmar, modificar e adequar, extraindo do conjunto os elementos radiculares que se confirmam na confrontação com a praxis. É a questão de adaptar e desenvolver Gramsci, e o marxismo em geral, Í s novas condições, sem esquecer que se trata de um processo permanentemente inacabado.

Para além da metáfora do Oriente e o Ocidente, o revolucionário italiano estabeleceu uma série de categorias e teses, algumas das quais se apresentam como adequadas e oportunas nas análises de certos fenómenos sociais e possÍ­vel acção que deles emanem.

Obviamente, há que situar qualquer nova incursão no quadro – e como parte do mesmo –, do processo das mundializações múltiplas que se vêm produzindo e a crescente desigualdade de poder entre as nações que estes processos estão a gerar. Vai-se estabelecendo uma nova dialéctica da articulação entre o especificamente nacional e o que é próprio do internacional. E é tendo esse quadro e essa dialéctica sempre em mente que é possÍ­vel realizar algumas aproximações Í  questão das classes e dos grupos subalternos, na sua articulação dentro da sociedade civil. É este um aspecto do pensamento de Gramsci que, hoje, me parece de particular actualidade e relevância, ainda que, é óbvio, não seja o único.

É bom rever alguns dos elementos ligados com a sociedade civil e a sua relação com o Estado, se bem que não farei uso da metáfora “Estado alargado” que, na realidade, não me parece muito feliz. Para o tema que nos propomos tratar é conveniente estabelecer algumas precisões Í  volta da sociedade civil, se bem que algumas das suas dimensões têm hoje implicações directas e significativas acerca do papel e da função dos grupos subalternos.

Ao contrário de outros colegas não vejo uma diferença essencial entre o conceito e o uso que Gramsci faz da sociedade civil e o de Marx. Nem este último limitou a sociedade civil ao económico, nem o primeiro a circunscreveu Í  superestrutura. Mas é principalmente sobre Marx que existem alguns mal-entendidos com repercussão para a presente análise. O jovem Marx, na Questão judia, concedeu Í  sociedade civil e Í  sua relação com o Estado um lugar central. E a partir desse momento, como o recordou recentemente Liguori, Marx não acreditava que a sociedade civil abarque apenas as condições materiais. [1] Mais Í  frente, no O Dezoito de Brumário, Marx inclui, muito claramente, as organizações e os movimentos associativos de grupos e cidadãos dentro da sociedade civil, algo particularmente próximo do uso que Gramsci fará posteriormente.

Por outro lado, nada parece indicar que tenha caducado a tese central de Marx de que, na nova sociedade socialista/comunista deve realizar-se a superação da cisão entre sociedade civil e Estado, própria da sociedade capitalista. As observações de Gramsci sobre isto apontam, por sua vez, na mesma direcção. Mais, as análises de Gramsci são abundantes e enriquecem precisamente esta questão que, como se recordará, ocupa um lugar privilegiado em Marx em A Guerra Civil em França e nos dois rascunhos que preparou antes do texto definitivo. Hoje podemos com justeza acrescentar, Í  luz de recentes experiências dolorosas, que o esquecimento desta última tese (em rigor, a ocorrência do seu contrário) foi precisamente um dos elementos que coadjuvaram a queda do socialismo europeu.

No momento actual pode observar-se, por um lado, um desenvolvimento sem paralelo de múltiplas e variadas formas de diálogo entre as diversas sociedades civis do planeta, o que anteriormente não acontecia tão activamente. Por outro lado, como judiciosamente observaram alguns especialistas, a sociedade civil internacionaliza-se cada vez mais. [2] À primeira vista ambas as posições podem parecer excludentes, isto é, ou se dá um ou o outro; mas isto só é assim se a questão for abordada de modo superficial, porque são duas manifestações unÍ­ssonas, que se alimentam e estimulam mutuamente. No que respeita aos movimentos associativos a importância do diálogo e a concertação para a aprendizagem mútua e as acções conjuntas apresenta-se como essencial, e a projecção desse diálogo entre diversas sociedades civis nacionais ou regionais faz-se de forma cada vez mais evidente e presente.

A vitalidade destes movimentos associativos, por muitos chamados ou autointitulados de sociedade civil, e as posições progressistas que, em geral, os caracterizam criaram em certa esquerda uma idealização que, por sua vez, tende a restringir o conceito apenas Í s ONG (organizações não governamentais), e a vê-las como o pólo positivo do binómio Estado/sociedade civil. E é esta idealização e mitologia, fundada sobretudo em apreciações abstractas e ahistóricas, a que deve concitar uma particular atenção polÍ­tica. Estas idealizações tendem a ignorar que a sociedade civil (inclusive se esta se restringe indevidamente Í s ONG) não é nem classista nem ideologicamente homogénea, como muito bem analisaram tanto Marx como Gramsci. Para ambos, a sociedade civil é um lugar onde se dão e chocam contradições diversas, entre elas, as lutas de classes e de diversos grupos e comportamentos sociais; ela é, como assinalava Gramsci, o lugar das lutas pela hegemonia e o lugar onde também, sob certas circunstâncias, se podia alcançar o consenso. Na realidade, a sociedade civil é atravessada por conflitos e desavenças, e a burguesia, os latifundiários (da América Latina e outros paÍ­ses subdesenvolvidos) e os exploradores de todo o tipo (particularmente o imperialismo na perspectiva internacional) organizam também as suas associações ou apoiam e manipulam muitas outras que chegam a aceitar (ou foram especificamente para isso) e desempenhar funções e acções públicas, que oferecem desta maneira hábeis coberturas que tornam menos evidente o desÍ­gnio real do império e dos seus associados.

Neste momento da internacionalização do capital e da mundialização neoliberal, os chamados movimentos de antiglobalização (na realidade antiglobalização neoliberal) estão identificados como parte vital e viva dos movimentos de protesto, do tipo que são considerados como da sociedade civil. E estas forças heterogéneas, como pólo antiglobalização, e nalgumas ocasiões antiimperialistas, mostram a sua presença crescente e recebem cada vez maior protagonismo e importância social e polÍ­tica, tanto a nÍ­vel dos paÍ­ses e regiões como a nÍ­vel planetário. Seattle, Niza, Bolonha, Montreal e, sobretudo, Porto Alegre são reconhecidos momentos mais destacados destas iniciativas, as quais, por sua vez, põem em evidência o diálogo de sociedades civis e a sua internacionalização.

De um modo geral também se pode dizer que, hoje, o destaque e o papel das sociedades civis acrescentam-se, pelo menos em varias das suas projecções, no entendimento de que o reconhecimento desta força, já quotidiana no panorama polÍ­tico e social, não diminui minimamente a importância e o peso do Estado, nem das organizações e partidos polÍ­ticos. Todo este panorama conduz ao reconhecimento de que, tanto a nÍ­vel nacional como internacional, as sociedades civis irromperam com maior força, ou manifestam-se com maior pujança; um acontecimento que na América Latina também se denomina como novos movimentos sociais (muitos dos quais, em rigor, não são “novos”, como é o caso dos direitos dos indÍ­genas ou das mulheres) e que, tanto prática como teoricamente, estão unidos aos chamados movimentos da sociedade civil.

Sem cair na perigosa distorção de que o conjunto destes movimentos tornam obsoleta ou secundária a luta de classes ou de que eles se converteram nos elementos predominantes de devir social, não há dúvida que as lutas sociais de hoje devem imperativamente contar com estes movimentos e, mais, dar as boas vindas ao seu advento. Para os que realmente aspiram a mudanças radicais e acreditam num mundo melhor e em mais justiça social é um advento feliz. O que não exclui, antes pelo contrário, evitar os ilusionismos e o desprezo pelo papel insubstituÍ­vel da organização e do partido revolucionários, e muito menos, deixar passar para um plano secundário a tarefa sempre permanente, das classes revolucionárias tomarem o poder polÍ­tico, essencialmente concentrado no Estado. Nesta ordem de ideias, nem Marx, nem Gramsci de forma mais especÍ­fica, podem ser postos de lado. Talvez em Gramsci, de forma mais especÍ­fica, se possam identificar inestimáveis chaves para melhor apreender estas novas complexidades, sem cair nas visões da subestimação nem na negação do protagonismo das lutas de classe.

Visto, tanto na sua dinâmica como na dialéctica do nacional e do internacional, a questão marxista-gramsciana que se coloca é, como é possÍ­vel conciliar, neste conjunto heterogéneo, um factor aliado ou parte do sujeito histórico formado pelas classes exploradas portadoras das mudanças, como o proletariado e o campesinato (o movimento indÍ­gena estaria nele incluÍ­do tal e como o concebeu Mariátegui mas com as suas particularidades, hoje cada vez mais reconhecidas). Em que medida e de que forma pode Gramsci contribuir para esta premência. Como usar e aplicar as categorias e conceitos fundamentais, quais os que se apresentam como mais apropriados e ajustados para dar conta das novas situações e mobilizações.

É neste amplo e complexo panorama que se teria de introduzir e readequar o conceito gramsciano de classes e grupos subalternos. Um conjunto que se torna inseparável, tanto do conjunto de outras categorias gramscianas como as de hegemonia, sociedade civil e guerra de posições, bem como das categorias marxistas em geral, próprias da concepção materialista da história fundada por Marx e Engels. Indubitavelmente, ambos se ocuparam do papel, função social e acção de diversos grupos e estratos sociais que não eram, em rigor, classes sociais, particularmente nas análises históricas de momentos ou épocas especÍ­ficas. Mas não encontramos neles um conceito ou uma categoria que trate de os englobar e de os apreender, nem enquanto tal, nem na sua interacção com as classes sociais. Falta nos fundadores essa categoria que dê conta de movimentos e grupos sociais, que não são classes sociais nem funcionam como elas. A categoria de subalterno em Gramsci poderia realizar essa função que a realidade social do mundo actual, gritantemente parece pedir. Gramsci manteve sobre a tese a importância e a centralidade das classes sociais, tratou igualmente estabelecer um conceito que abarcasse todos esses movimentos que não cabem, como tal, nas classes ou que não se esgotam nelas. Inclusive, não seria exagerado concluir que o conceito de classes ou de grupos sociais subalternos, com o impacto dos heterogéneos movimentos sociais da sociedade civil, possui hoje uma maior pertinência e validade que no próprio momento em que o seu autor o concebeu. Em todo o caso, o uso actual, no sentido que se propõe neste artigo, implicaria uma ampliação e redefinição do seu funcionamento, sem o que isso constituÍ­a uma “traição” a Gramsci. Tratar-se-ia antes de conceber dois sentidos, um mais restricto, tal e como aparece directamente em Gramsci, e outro mais amplo, mas sempre sobre as bases por ele estabelecidas para os identificar e caracterizar, tais como a desagregação, a ausência de consciência polÍ­tica madura, heterogeneidade, multiplicidade, etc..

A intenção deste artigo não é entrar em detalhe nem em profundidade sobre o conceito de subalterno em Gramsci, e menos ainda na evolução do mesmo dentro das Cartas da Prisão. Um mÍ­nimo de pontos de referência resulta no entanto indispensável para o argumento da análise.

A ideia das classes subalternas aparece desde as primeiras Cartas e Gramsci chega a atribuir-lhe um interesse tal que lhe dedica a sua Carta nº 25, onde recompila boa parte das suas anteriores apreciações para o apresentar como um todo orgânico. É óbvio o sentido que a denominação vai ter, visto que o próprio termo já indica a situação de hegemonia e dominação de uns grupos sociais sobre os outros, sempre baseado nas teses centrais do materialismo histórico sobre as contradições objectivas da sociedade e o papel que nelas desempenha as condições materiais.

A primeira coisa que parece vai interessar Gramsci é sobretudo uma questão de estudo e história dessas classes subalternas, quer dizer, a sua marginalização na historiografia. O próprio tÍ­tulo do § 90 do Q.3 sublinha a intenção: “História das classes subalternas”. Propõe então o que “há que estudar” em seis pontos que constituem na realidade uma “lista de fases”. Mas pelo seu conteúdo essas “fases” de estudo indicam já uma tese da evolução das classes subalternas ao longo da história, desde a sua formação inicial até Í  etapa em que estas classes alcançariam a sua autonomia, isto é, deixariam de ser dependentes das classes dominantes. A oposição dá-se claramente entre as classes subalternas e as classes dominantes. Por isso não é um simples projecto de estudo ideológica e teoricamente neutro, antes constitui de facto uma proposta de interpretação histórica que Gramsci vai ratificar no Q.25, a qual contém teses e hipóteses iniciais que esboçam a progressão do desenvolvimento e crescimento ideológico, polÍ­tico e organizativo das classes e grupos subalternos. É importante destacar, para o objectivo desta análise, uma significativa frase do parágrafo anteriormente mencionado, visto que nela, Gramsci, ao referir-se Í  falta de unidade das classes subalternas em contraste com as dominantes, deixa já claramente estabelecido o nexo indissolúvel entreos subalternos e a sociedade civil. “Para as classes subalternas a unificação não se produz: a sua história está entrelaçada com a da ‘sociedade civilÂ’, é uma fracção desagregada desta.” [3]

Para Gramsci está claro que dispersão e a falta de coesão são insuficiências polÍ­ticas e ideológicas que há que superar, se é que os subalternos querem realmente alcançar a sua autonomia. Por isso, a actual posição pós-moderna que, com a justificação da pluralidade e da multiplicidade, trata de manter os subalternos desagregados e incapazes da união de propósitos e coesão activa, conduz Í  falta de projectos e Í  renúncia de acções polÍ­ticas efectivas que permitam superar o seu carácter subalterno e a sua marginalidade polÍ­tica, completamente fora do sujeito social. [4]

Significativo para a presente análise são as interessantes conclusões que se podem extrair de uma revisão ordenada das referências de Gramsci Í  questão do subalterno, em particular do uso que faz, nuns e noutros casos, seja “classes” ou “grupos” para se referir aos subalternos. Reveladoras derivações para a nossa indagação emergem dessa confrontação.

Assim, na Carta 3 as referências expressam-se quase exclusivamente através do conceito de classes, e poucas vezes aparece o termo grupos ou outros quaisquer. Esta situação mantém-se, no essencial, sobre a mesma disposição de outra Cartas onde o tema é encarado; são os casos das Cartas 8, 9 e 10. Uma certa inflexão começa a manifestar-se na Carta 13, onde as referências aos “grupos” aumentam a sua frequência e força, e Gramsci utiliza regularmente os dois termos nas suas análises e observações sobre os subalternos. Esta tendência confirma-se na Carta 14.

O panorama modifica-se ainda mais substancialmente quando entramos na Carta chave Nº 25. Aqui, a tendência para o predomÍ­nio do termo “grupos” é quase absoluta. Inclusive, vale a pena algumas comparações relevantes que ratificam este critério. Como se disse acima, Gramsci sintetiza nestas Cartas de forma mais sistemática uma parte das suas observações e juÍ­zos das Cartas anteriores, incluindo a Nº3. Vários parágrafos e secções são quase textualmente copiados na nova Carta. Mas de maneira significativa, em quase todas as ocasiões onde na Carta 3 falava de classes subalternas, ficam agora substituÍ­das pelo termo grupos subalternos. É o caso das seis frases já mencionadas, e é também o caso dos seus juÍ­zos sobre estas classes e grupos na antiguidade romana (parágrafos 4 e 5 respectivamente). É óbvio que há nisto uma intenção conceptual e teórica. Não se trata de um abandono, marginalização ou deslocação de um conceito para outro no corpo teórico, nem tampouco é de remeter para um plano secundário as lutas de classe ou o papel das classes, em geral, na dinâmica social. Haveria que interpretá-lo, melhor, como uma tomada de consciência de que os subalternos incluem tanto classes (definitivamente a referência não se abandona) como grupos, tudo o que constitui precisamente os subalternos. Há, pois, uma ampliação da óptica que se ajusta melhor Í  heterogeneidade social dos subalternos. Esta óptica, precisamente, aproxima-se mais Í  proposta de alargamento do conceito gramsciano do subalterno expressa em parágrafos anteriores. Quer dizer, que o conceito, desta maneira ampliado para além das classes sociais mas incluindo-as, viria a preencher a ausência de uma categoria deste tipo em Marx; ela permite, por sua vez, dar conta de forma mais adequada da maioria dos movimentos sociais hoje em eclosão, bem como dos chamados movimentos e organizações da sociedade civil; Os dois não são sempre equivalentes, ainda que com frequência se sobreponham e constituem, de facto, a mesma entidade. Os subalternos de forma ampla incluiriam as classes exploradas e em geral o conjunto dos oprimidos e marginalizados que actuam, em grande medida, como parte desses movimentos sociais e da sociedade civil, mas não os casos de desvios étnicos, religiosos (fundamentalistas), culturais, etc., que não constituem na realidade, forças de mudança social progressistas ou revolucionárias, e que conduzem muitas vezes por caminhos carentes de verdadeiras perspectivas de superação ou liquidação da exploração e da opressão; Também não podem constituir uma frente clara para a emancipação e a justiça social.

O grosso das forças subalternas (Gramsci também falava de forças) coincide numa feliz expressão, com as caracterização que Gramsci fez para as classes e grupos subalternos A fragmentação, dispersão e heterogeneidade é um obstáculo a superar e vencer. Estes grupos não poderão superar as suas debilidades e incapacidade de influir ou determinar o curso dos acontecimentos, se não conseguirem uma maior coesão de consciência e acção e se não superarem a subestimação, e até a rejeição, que alguns têm da polÍ­tica. Gramsci, precisamente, concebia a capacidade da polÍ­tica para inovar e transformar; [5] é fundamental que a polÍ­tica seja reconhecida em toda a sua legitimidade. O subalterno não só constitui um agente activo, mas também trata de forjar uma consciência teórica e polÍ­tica e uma capacidade de crÍ­tica se si mesmo que lhe permita superar as suas próprias debilidades e insuficiências, tal e como claramente indicava o revolucionário sardo. Estas forças subalternas necessitam de estabelecer fins e programas polÍ­ticos concretos e definidos e deixar para trás estados de ânimo vagos e vacilantes. Só esse caminho conduzirá Í  unidade que dá força e permite a iniciativa, e favorece também a actuação com eficácia e com resultados capazes de desembocar na autonomia desses grupos subalternos e de os conduzir a êxitos e vitórias. Gramsci insistia em que “só a vitória ‘permanenteÂ’ rompe, e não imediatamente, a sua subordinação”.

A participação das forças subalternas nas lutas pela hegemonia em todos os planos é um objectivo essencial dentro das grandes batalhas contra o capitalismo e o imperialismo. Estas não podem levar-se a cabo sem um sujeito histórico, que se ajusta através das lutas de classes e das lutas sociais em geral, particularmente – dentro destas últimas – as subalternas.

Nos movimentos revolucionários, e de transformação radical em geral, o sujeito histórico necessita da formação de uma vontade colectiva fundada numa correcta interpretação da realidade e num programa de luta coerente e apropriado Í s circunstâncias; um sujeito histórico funciona com objectivos estratégicos claros e precisos e que e que inclua também a organização revolucionária, Í  qual Gramsci concedia uma importância determinante. Esta relação de vontade colectiva-sujeito histórico-organização revolucionária é hoje da maior importância e actualidade. Mas nas condições do mundo de hoje com as suas mundializações múltiplas, particularmente a internacionalização do capital, a acção e projecção das forças da mudança emancipatória não podem limitar-se ao quadro nacional, pois a definição desse programa adquire dimensão internacional e o próprio cenário de acção pede a interligação do nacional e do internacional. O internacionalismo das classes e grupos subalternos é hoje de maior actualidade que nunca. Hoje, ser gramsciano implica, entre outras coisas, que os intelectuais orgânicos do presente se confrontem com novas realidades e, portanto, surjam novos conteúdos na sua união e aliança com as forças subalternas como parte do necessário processo conjunto de esclarecimento, amadurecimento da consciência, responsabilidade internacionalista e acção autónoma e concertada. É nesse esforço que os subalternos chegam a fazer parte do sujeito histórico, isto é, o sujeito de mudança radical do sistema.

As forças subalternas podem converter-se na força polÍ­tica estável e efectiva, a qual, superando as desagregações e canalizando tensões que a sua multiplicidade heterogénea produz, seja capaz da unidade de propósito e acção polÍ­tica eficaz, tanto no plano nacional como no internacional, onde actuam concertadamente com as diversas forças nacionais. Ele é possÍ­vel sobretudo a partir de uma clara identificação de objectivos comuns, essenciais para a mudança social, como o são, por exemplo, a luta antiglobalização (neoliberal) e contra o novo intervencionismo imperialista e, no caso da América Latina, a luta contra o ALCA e o projecto de anexação imperial sob a capa da liberdade de mercado.

Claro que, em rigor, segundo Gramsci, o subalterno não pode ser verdadeiramente sujeito nem pode tampouco ser unitário enquanto não tomar o poder do Estado e deixa então de ter carácter subalterno para se tornar dominante. Mas no sentido amplo proposto neste trabalho, a partir da presença dos grandes movimentos de massas que se multiplicam e que são cada vez mais poderosos, as forças subalternas podem avançar para a sua própria direcção intelectual e moral e iniciar o processo de superação das suas limitações; isso permitiria a esses movimentos sociais e de sociedade civil (no sentido actual desta apreciação) converterem-se, assim, numa formidável força de oposição e rebelião.

A luta polÍ­tica e ideológica, alcançaria desta maneira a totalidade da existência subalterna e o endurecimento da sua acção e da sua influência teriam a possibilidade de acrescentar-se dentro da unidade internacional dos subalternos. Seguindo Marx e Gramsci é possÍ­vel e correcto colocar a si mesmo um papel um papel e uma função mais importante e mais destacada dos subalternos no mundo de hoje. Na generalidade, criou-se um novo terreno de luta para os subalternos, e as mudanças radicais e revolucionárias só serão possÍ­veis em união com eles.

Notas:
[1] Guido Liguori, “Estado y sociedad civil desde Marx hasta Gramsci”, Marx Ahora, Nº 12, segundo semestre de 2002. O texto de Marx na Questão JudÍ­a indica: “Este conflito mundanoÂ… a relação do Estado polÍ­tico com os seus pressupostos, sejam estes elementos materiais como a propriedade privada, etc. ou espirituais, como a cultura, religiãoÂ…, a cisão entre o Estado polÍ­tico e a sociedade civil…” (em A Sagrada famÍ­lia e outros textos. Editorial Grijalbo, México D.F., 1959. pag. 24/ Modificado pelo meu segundo cotejo com o original). E mais Í  frente confirma: “A revolução polÍ­tica confirma: “A revolução polÍ­tica suprimiu, com isso, o carácter polÍ­tico da sociedade civil. Rompeu [ou “partiu” /IM] a sociedade civil nas suas partes integrantes mais simples, uma parte os indivÍ­duos e outra parte os elementos materiais e espirituais, que formam o conteúdo, de vida, a situação civil destes indivÍ­duos.” (Em ibid, p. 36)
[2] No caso de Cuba devemos a exposição deste ponto de vista a Thalia Fung
[3] Cuadernos del carcél, tomo 2, Ediciones Era, México D.F. 1975, Q. 3 § 90, p. 89. O sublinhado é meu.
[4] Ver as oportunas observações sobre estas posições dos pós modernos em JosephButtigieg, “I ‘subalterniÂ’ nel pensieri di Gramsci” em la rivoluzione in occidente, Editori Riuniti Roma, 1999.
[5] Tat-se, claro está, da polÍ­tica renovada (Versobre isto, Carlos NelsonCoutinho, Gramsci. Um estudo sobre o seu pensamento polÍ­tico. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro,1999, Cap.IV, 3.
[6] Tomo 6, em op.citada, Q.25, § 2, p 178

* Filósofa, Professora da Universidade de Havana, directora da revista Marxismo Hoy

Este artigo foi enviado a odiario.info pela autora, nossa amiga e colaboradora especial.

Tradução de José Paulo Gascão

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