Sobre a questão do Estado

Miguel Urbano Rodrigues    12.Jul.14    Destaques

A situação na Europa neste inÍ­cio do segundo milénio é muito diferente da existente na Rússia de 1917. Mas há lições da História que permanecem actuais. Em l967 ́lvaro Cunhal pôs enfase numa delas ao recordar que sendo o Estado burguês «um instrumento de dominação de uma classe sobre outras classes», será preciso destrui-lo e substitui-lo por um Estado diferente, quando o povo, sem data no calendário, conquistar o poder.

Num texto de quatro dezenas de páginas, publicado em 1967 no Militante*, ́lvaro Cunhal define a Questão do Estado como a Questão Central de Cada Revolução.

Nesse ensaio retoma uma tese leninista fundamental.

No final do seculo XIX, o social-democrata alemão Edward Bernstein sustentou que era possÍ­vel derrotar a burguesia e transformar radicalmente a sociedade num quadro institucional (o bismarckiano) sem necessidade de uma revolução. Para Bernstein «o movimento (leia-se reformas) é quase tudo». Essa posição, denunciada como oportunista e capituladora por Rosa Luxemburgo e Lenin, assinalou o inÍ­cio de uma rutura com o marxismo de partidos e organizações que até então defendiam a tomada do poder pela classe operária pela via revolucionária.

A destruição do capitalismo na Rússia após a Revolução de Outubro, concebida e dirigida pelo Partido Bolchevique, não pôs fim Í  polémica em torno de uma questão fulcral: é possÍ­vel construir o socialismo num paÍ­s utilizando as instituições criadas pela burguesia para atingir os seus objetivos?

O golpe de estado de Pinochet (ideado nos EUA) como desfecho sangrento dos Mil Dias da Unidade Popular chilena foi uma resposta da História Í queles que insistiam em defender a «via pacÍ­fica» para a construção do socialismo utilizando o estado burguês.

Transcorrido um quarto de século, as sucessivas vitórias eleitorais de Hugo Chávez na Venezuela reatualizaram o debate sobre o tema. O falecimento prematuro do lÍ­der da Revolução bolivariana não somente, porem, confirmou que a sua evolução foi desde o inÍ­cio decisivamente condicionada pelo fator subjetivo como desaconselha previsões sobre o rumo do processo.

́lvaro Cunhal lembra no seu trabalho que Lenin insistia que, conquistado o poder, o proletariado não se pode limitar a tomar conta do aparelho do estado burguês, mas tem de destrui-lo e substitui-lo por um novo Estado.

É útil recordar que ao regressar Í  Rússia após a Revolução de Fevereiro, Lenin se pronunciou contra qualquer forma de colaboração com o governo do prÍ­ncipe Lvov. Ao exigir nas Teses de Abril todo o Poder para os Sovietes, o grande revolucionário, num quadro de dualidade de poderes, imprimiu uma guinada na estratégia do Partido. Meses depois, ao escrever O Estado e a Revolução, aprofundou a crÍ­tica a ilusões de cooperação com a burguesia (o governo de Kerenski), retomando ensinamentos de Marx.

Obviamente que a situação na Europa neste inÍ­cio do segundo milénio é muito diferente da existente na Rússia de 1917. Mas há lições da História que permanecem atuais. ́lvaro Cunhal pôs ênfase numa delas em l967 ao recordar que sendo o Estado burguês «um instrumento de dominação de uma classe sobre outras classes», será preciso destruÍ­-lo e substitui-lo por um Estado diferente, quando o povo, sem data no calendário, conquistar o poder.

Não se desatualizou o lúcido ensaio do saudoso secretário-geral do PCP.

Transcorrido quase meio seculo, numa Europa dominada pelo grande capital, quando muitos partidos comunistas se social-democratizaram, persistem em forças e organizações progressistas ilusões sobre a chamada democracia representativa. Condenam o imperialismo e o capitalismo, mas, perante a inexistência a medio prazo de condições subjetivas para o surgimento de situações pré-revolucionárias, adotam estratégias reformistas, integradas no sistema. Sem o reconhecerem, atuam como se através das instituições pudessem um dia chegar ao governo. O Partido da Esquerda Europeia e partidos como o Syriza grego são na prática inofensivos para o Estado burguês e servem os seus objetivos. Praticam uma forma de oportunismo que se manifesta inclusive na linguagem polÍ­tica dos dirigentes. Admitir por exemplo que as ditaduras da burguesia europeias de fachada democrática são formas de democracia polÍ­tica é um grave erro.

Obviamente que os partidos que se batem pelo socialismo devem participar nos parlamentos e lutar neles por reformas revolucionarias. Já Lenine atribuÍ­a importância a esse tipo de intervenção. Mas sem ilusões. A sua função deve ser o combate ao sistema, sem a perspetiva de eventual cooperação com partidos burgueses no parlamento e fora dele. As reformas de conteúdo revolucionário são, aliás, inviáveis no âmbito de instituições controladas pelo capital.

A QUESTÃO DO ESTADO

Em entrevista recente a uma web basca, Boltxe (in La Haine,18.5.14), comentando a crise estrutural do capitalismo, chamei a atenção para o explosivo renascimento do marxismo. Contrariando profecias dos intelectuais anticomunistas, multiplicam-se hoje, na Europa e na América, os Congressos e seminários sobre a obra e o pensamento de Karl Marx. Em França - um exemplo - o curso sobre Marx na Sorbonne, promovido pelo filósofo e historiador Jean Salem é um êxito, acompanhado na Internet por mais de 30 000 pessoas.

Esse interesse das novas gerações pelo marxismo confirma a sua vitalidade como ideologia criadora e dinâmica, tal como a concebeu Marx - um instrumento revolucionário indispensável Í  compreensão do mundo atual e Í  sua transformação através de lutas contra o capitalismo do seculo XXI, diferente daquele que inspirou o autor de O Capital, mas para o qual, hoje como ontem, a exploração do homem é condição da sua sobrevivência. Sendo o capitalismo pela sua essência desumano, não vejo para ele outra alternativa que não seja o socialismo.

Como comunista estou consciente de que a palavra socialismo é suscitável de muitas interpretações. As lições da derrota da União Soviética e a transformação da Rússia num pais capitalista trazem-nos, aliás, a certeza de que o desaparecimento do capitalismo não dará origem a um modelo único de socialismo.

Nos últimos anos surgiram obras muito importantes de filósofos marxistas revolucionários. Citarei entre outros cujos trabalhos merecem estudo atento, o italiano Domenico Losurdo e o francês Georges Labica.

Ambos, sublinho, coincidem com ́lvaro Cunhal na conclusão de que é indispensável, quando um partido marxista-leninista toma o poder, destruir pela raiz o Estado burguês. O desfecho da experiência chilena - nunca é demais recordar essa evidência – demonstrou com clareza meridiana a impossibilidade de se utilizar com êxito o aparelho de Estado criado pela burguesia para impor um sistema incompatÍ­vel com os objetivos desta. O rumo dos acontecimentos na Venezuela bolivariana e na BolÍ­via também está a confirmar que a chamada «via pacifica para o socialismo» é uma tese romântica.

A EXTINÇÃO DO ESTADO

É porem ilusório e ingénuo crer que por si só a destruição do aparelho do Estado burguês resolve o problema da construção, função e natureza do Estado socialista. Lenin, logo após a vitória da Revolução de Outubro, alertou o Partido para os tremendos desafios da transição no futuro imediato.

Losurdo coloca concretamente uma questão teórica fundamental sobre a transição do capitalismo para uma sociedade socialista humanizada, sem exploradores nem explorados. Em Marx não se encontra resposta a essa questão crucial.

Losurdo não critica diretamente a tese marxista da extinção gradual do Estado. Mas recorda, com alguma frustração, as respostas que a História deu ao tema em sociedades nas quais partidos comunistas, tomado o poder, iniciaram a construção do socialismo. O Estado burguês, destruÍ­do, foi neles substituÍ­do, num contexto de luta de classes exacerbada, por um Estado de transição. A meta, distante, era o comunismo após a construção do socialismo.

Mas em nenhuma dessas experiências revolucionárias o novo Estado edificado pelo Partido sobre as ruinas do Estado burgues preexistente se encaminhou com o tempo para a extinção, como previa Marx. Ocorreu o contrário. O Estado, por motivos muito diferentes, em circunstâncias históricas dissemelhantes, fortaleceu-se continuamente. Isso ocorreu concretamente na União Soviética, em Cuba, no Vietnam. Não creio que os erros e desvios cometidos pelos partidos comunistas desses três paÍ­ses - e foram muitos e graves - possam ter sido a causa determinante da não redução do papel e da dimensão do Estado socialista. Assistiu-se, pelo contrário, a uma hipertrofia do Estado.

A explicação desse fenómeno polÍ­tico, social e económico, algo não previsto por Marx, encontramo-la – admito - no homem, na resistência do ser humano a transformar-se, mesmo em benefÍ­cio próprio.

A humanidade realizou conquistas prodigiosas no domÍ­nio da ciência e da técnica. A vida é hoje totalmente diferente do que era na Atenas de Péricles. Mas o homem do Século XXI não é melhor nem mais inteligente do que eram - apenas dois exemplos - Platão e Aristóteles. O homo sapiens contemporâneo, com as suas virtudes, vÍ­cios e aspirações, não difere muito na sua capacidade de amar, sentir e lutar do ateniense do seculo V A.C., ou do cidadão de Jerusalém da época de Jesus.

O homem novo, por ora, continua a ser uma aspiração, um ser mÍ­tico, utópico. O aparecimento rapidÍ­ssimo na Rússia de Ieltsin de milhões de homens antigos, com todos os estigmas do capitalismo, requer reflexão.

A transição do capitalismo para o socialismo será muito mais lenta do que Karl Marx previu.

Na monstruosa engrenagem a serviço do capital que é hoje a União Europeia a probabilidade de ruturas revolucionarias nos paÍ­ses periféricos, imperializados, é mÍ­nima na atual conjuntura, mesmo naqueles onde existem condições objetivas favoráveis.

Essa convicção não implica que os comunistas baixem os braços na luta contra o capitalismo.

A opção comunista exige uma disponibilidade permanente para o combate contra o capitalismo como inimigo da humanidade.
A advertência de Rosa Luxemburgo sobre a antinomia socialismo ou barbárie não perdeu atualidade. Está nas mãos da Humanidade optar pela sua continuidade ou extinção.

As revoluções não são pré-datadas. Tive o privilégio de ser testemunha de algumas e participei modestamente na luminosa e breve saga do 25 de Abril e na luta pela defesa das suas conquistas.

Sei que a minha vida útil se aproxima do fim. Mas o meu compromisso como comunista não é com o calendário e sim com os princÍ­pios e valores pelos quais me bati – o ideário que conferiu sentido Í  minha aventura existencial.
Vejo como ingénua a esperança de que as revoluções futuras sejam obra dos movimentos sociais. O espontaneismo não faz história profunda. A luta de classes continua a ser o motor da História. E é ao partido revolucionário marxista-leninista de novo tipo que cabe liderá-la como vanguarda.
No momento não estão criadas as condições subjetivas para revoluções socialistas no futuro imediato. Mas o capitalismo não tem soluções para salvar da destruição o seu monstruoso projeto de dominação universal. Está condenado a desaparecer. Entrou já num lento processo de implosão.
A maré da luta de classes sobe. E a convergência de muitas lutas em muitos paÍ­ses será fatal para o capitalismo.

Serpa e Vila Nova de Gaia, julho de 2014
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*Editado em brochura em 1967 e reeditado em 2007, com um prefácio de José Casanova

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