«O Capital no Século XXI»
Leitura crÍ­tica da obra de Thomas Piketty

Michel Gruselle*    23.Mar.15    Destaques

O livro de Piketty é um êxito de vendas. O New York Times, o Financial Times, o Economist cobrem-no de elogios. Esta crÍ­tica ajuda a compreender porquê: Piketty critica desigualdades que o capitalismo gera, mas não identifica a luta de classes. E a ilusória solução que propõe é uma fantasia reformista no quadro do capitalismo.

Plano:
Introdução; Apresentação geral da obra; Receita e capital; A dinâmica da relação capital/receita; A estrutura das desigualdades; Regular o capital no século XXI; Porquê o livro de Piketty, qual o seu interesse?; Fundamentalmente, haverá uma via reformista possÍ­vel?; Conclusões

Introdução

O tÍ­tulo do livro de Thomas Piketty,o Capital no século XXI soa como uma réplica do capital de K. Marx. Este livro chamou a atenção do CUEM na medida em que bate recordes de venda, vários milhões de exemplares, e porque o seu autor foi largamente solicitado para comentar as suas obras. Nos Estados Unidos esse livro suscitou um vivo debate mesmo nos meios progressistas. O New York Times saudou Piketty como o economista rock-star e o Financial Times baptizou o livro como extraordinariamente importante enquanto os prémios Nobel de Economia J. Stiglitz e K. Krugman acharam que se trata da obra mais significativa do ano, «apta» a transformar o nosso discurso económico». Na França, o autor foi muito solicitado pelos media para comentar os acontecimentos económicos e mais recentemente a situação na Grécia. Desse ponto de vista recomendo a entrevista de Piketty por Iglésias, o lÍ­der do Podemos, entrevista disponÍ­vel na Internet e que aclara as posições de Piketty e as do Podemos.
DaÍ­ a afirmar-se que Piketty renovou a ciência económica e que ele é o Marx do Século XXI, não vai mais que um passo, que alguns se apressaram a dar. Por exemplo, o jornal The Economist coloca-o acima de Marx: «Maior que Marx» declara.
A proximidade do tÍ­tulo do livro com a da obra maior de Marx teve provavelmente um papel nos comentários mais que elogiosos que acabo de citar e numa mirÍ­ade de outros ainda. O tÍ­tulo é evidentemente importante numa obra e chama a nossa atenção. Para o leitor, no contexto da crise sistémica do capitalismo, é evidente o interesse de compreender o que é o capitalismo hoje, quais são as suas evoluções desde que este modo de produção começou a desenvolver-se e evidentemente quais seriam as soluções possÍ­veis para sair de uma crise que agita o mundo inteiro.
Digamos que a notoriedade assim adquirida, o sucesso popular da edição, nos levou a interrogarmo-nos sobre o conteúdo da obra, as teses que defende e as propostas que apresenta para a economia.
Mais uma razão para ir ao fundo das coisas e fazer uma leitura crÍ­tica desta obra.

Apresentação geral da obra

Vou começar por uma apresentação rápida do livro sem focar os pormenores e tentando mostrar a sua lógica interna.
O livro que comporta 950 páginas divide-se em quatro partes:

Receita e capital
A dinâmica da relação capital/receita
A estrutura das desigualdades
Regular o capital no século XXI

Se as três primeiras partes não parecem deixar aparecer um pendor polÍ­tico muito forte, que é apenas aparente, a ultima é claramente orientada para o que Piketty chama a «a retomada do controlo do capitalismo». Na quarta parte, regular o capital no século XXI, pág. 751 passa a mensagem central do seu pensamento: Podemos imaginar para o século XXI, uma ultrapassagem do capitalismo que seja mais pacÍ­fica e mais durável, ou devemos simplesmente aguardar as próximas crises ou as próximas guerras, desta vez verdadeiramente mundiais? Tudo está dito ou quase tudo, quem escolherá o apocalipse guerreiro! O autor escolheu assim claramente o que ele chama a ultrapassagem do capitalismo.
A escolha dos termos nada deixando ao acaso, tem de ser examinada. Para já o conceito de «ultrapassagem do capitalismo», que não é uma ideia nova, foi largamente utilizado no seu tempo por R. Hue para justificar o abandono pelo PCF de uma orientação revolucionária. O conteúdo é claro, as forças da ciência e da técnica levam naturalmente a uma transformação do capitalismo, que já não seria o capitalismo conservando as suas caracterÍ­sticas centrais em particular as do mercado. Mas esta última profissão de fé reformadora aponta o receio de que as forças sociais passem a reger de outra forma o problema, ou seja por uma modificação profunda das relações sociais. Sente-se aqui um certo receio de que o reformismo não possa encontrar os meios polÍ­ticos que permitam manter o sistema capitalista.

Introdução

Na sua introdução Piketty apresenta uma grande parte das orientações que vão estruturar o seu discurso. De imediato nota que: «a repartição das riquezas é uma das questões mais vivas e mais debatidas hoje. Vejamos bem que se trata da repartição das riquezas e não do sistema de extorsão capitalista da mais-valia.
Lembremos que a riqueza não é o valor. O sistema capitalista cria o valor a partir da riqueza que constituem o trabalho e os recursos naturais.
Este conceito de repartição das riquezas não aparece por acaso. É a chávena de chá quotidiana de todos os que colocam deliberadamente o capitalismo como um universo inultrapassável cuja reorganização - precisamente através desta outra repartição das riquezas - bastará para lhe assegurar a perenidade. Aliás todas as forças que querem manter o domÍ­nio do capital ou julgam que não há outra solução que o seu desenvolvimento procuram focalizar o seu discurso sobre esta famosa repartição das riquezas. A própria Igreja, na sua doutrina social, faz dela a pedra angular da sua marcha reformadora sem evidentemente pôr em causa o mundo de exploração do trabalho assalariado pelos detentores do capital. Lembremos também que Sarkozy queria uma nova partilha do valor acrescentado entre o capital e o trabalho, desejo que rapidamente caiu no esquecimento.
Nestas condições Piketty deve relegar Marx para a situação de visionário cujas predições não se realizaram. Partindo da ideia de que o capitalismo gera desigualdades, matiza imediatamente esta evidência incontornável, pelas contra-tendências que, segundo ele, estão em acção no sentido de permitir que o capitalismo se desenvolva, escrevendo na pág. 16 «o crescimento moderno e a difusão dos conhecimentos permitiram evitar o apocalipse marxista, mas não modificaram as estruturas profundas do capitalismo e as suas desigualdadesÂ…Mas existem meios para que a democracia e o interesse geral venham retomar o controlo do capitalismo e dos interesses privados, recusando os recuos proteccionistas e nacionalistas.» De que meios se trata? Vamos apresentá-los na quarta parte e demonstrar os seus limites.
Nesta citação breve podemos notar uma grande aproximação cientÍ­fica, ou seja a do interesse geral utilizada a contrario da luta de classes, uma vez que acima do seu antagonismo existiria uma finalidade que poderia reuni-los. Tendo estado alguns anos no CESER Ilha de França, posso testemunhar que este conceito de interesse geral não é mais que a folha de parra dos interesses do patronato e dos que os servem. O interesse geral é apenas o das classes dominantes e o dos seus interesses próprios. Serve para arrastar as classes dominadas no que é preciso chamar pelo nome a colaboração de classe. Claro que a classe dominante deve levar em conta as relações de força e é por vezes forçada a fazer concessões, como em 1936, 1945 e 68, perante lutas populares poderosas mas sem nunca se colocar fundamentalmente em perigo. De facto como retomar o controlo sobre o capital se pela sua mobilidade ele puder escapar-se aos constrangimentos que Piketty gostaria de impor-lhe.
Aquilo a que Piketty chama «a visão apocalÍ­ptica de Marx» é a lei fundamental que este último demonstrou: «a baixa tendencial da taxa de lucro». Segundo Piketty esta baixa mataria a acumulação e levaria Í  revolta dos trabalhadores. Mas, esse destino negro previsto por Marx não se realizou! Como é necessária uma explicação para esta não realização do apocalipse, Piketty atribui a Marx uma falta profunda de lucidez sobre a realidade do movimento de acumulação do capital pág. 28: «Marx negligenciou totalmente a possibilidade de um progresso técnico e de um crescimento contÍ­nuo da produtividade, força que permite equilibrar o processo de acumulação e de concentração crescente do capital privado».
É bastante divertido ler esta frase quando pelo contrário Marx consagrou muita energia a mostrar o papel do desenvolvimento cientÍ­fico e técnico na produção e no processo de acumulação do capital. Ao contrário do que afirma Piketty, a Tecnologia e a ciência desempenharam um papel importante no pensamento de Marx. Ele escreveu muito a propósito das grandes descobertas cientÍ­ficas da sua época. As matemáticas, a termodinâmica, as descobertas de Darwin inspiram frequentemente as suas propostas. Um exemplo, nos seus artigos consagrados Í  ́sia e publicados em 1853, Marx analisa o papel da ciência e da tecnologia inglesa no processo de destruição da sociedade indiana tradicional e também no desenvolvimento do capitalismo têxtil em Inglaterra.
Para terminar com a introdução notemos que Piketty envia piscadelas de olho daqui e dali para mostrar que apesar da reputação de homem de «esquerda» que entende atribuir-se, não está fora da confraria dos economistas ortodoxos, clássicos e neoclássicos, e digamos burgueses. Afirma-nos: «A desigualdade não é necessariamente má em si: «a questão das desigualdades depende das representações dos actores».
Vejamos agora o desenvolvimento das quatro partes do livro.

Receita e Capital (primeira parte)

Nesta primeira parte Piketty coloca os parâmetros da sua demonstração. Num primeiro tempo apresenta algumas definições e as suas indicações são interessantes pois dão um sentido Í  via polÍ­tica do seu autor. Primeiro sublinha de novo o carácter conflitual da partilha de produção entre salários e lucros depois entre rendimento do trabalho e rendimento do capital. Nota que o capitalismo exacerbou esse conflito mas não dá qualquer explicação para este agravamento e não se interroga sobre o porquê da perenidade desse conflito.
Nas linhas que se seguem após as suas constatações bastante banais apresenta-se um deslize significativo já que da análise capital/trabalho, segue para o do capital/rendimento, o que é totalmente diferente uma vez que o capital/trabalho remete para o cerne do sistema de exploração capitalista enquanto o capital/rendimento remete para considerações de tipo estatÍ­stico e coloca no mesmo plano os rendimentos retirados do trabalho e aqueles retirados da especulação. Não toma portanto em conta o processo de extracção da mais-valia baseada no trabalho assalariado.

Lembremos que para Marx:

O capital é acima de tudo um tipo de relações sociais na medida em que os capitalistas só podem possuir e acumular capital graças Í  relação social que mantém com os trabalhadores. Marx parte da análise da escola clássica para a qual o capital é constituÍ­do por todos os meios de produção avançados pelos capitalistas durante o ciclo de produção, ou seja, bens que o capitalista adquire a fim de produzir (máquinas, matérias-primas, edifÍ­ciosÂ…) o que Marx chama «capital constante», assim como a força de trabalho assalariada que Marx chama «o capital variável». Lembremos que a força de trabalho é: a mercadoria que os trabalhadores assalariados, para viver, devem vender aos seus empregadores capitalistas. Eles vendem não apenas o seu trabalho, mas a sua capacidade de trabalho: a sua força de trabalho. Marx descreve um processo de produção organizado de modo a que os capitalistas invistam dinheiro (A) a fim de conseguir os meios de produção (M) e uma força de trabalho (T) para produzir as mercadorias (M) que vão vender por uma soma de dinheiro (A') com A' superior a A. A diferença positiva procurada entre A e A' constitui a mais-valia.
Para Marx A' é superior a A pois os capitalistas exploram os trabalhadores não lhes pagando a totalidade do valor que eles produzem pelo seu trabalho. O capitalista compra a força de trabalho cujo valor de utilização cria o valor de troca. Paga-a ao preço da reprodução desta força, preço inferior ao valor de troca criada.
Esta parte não lançada é utilizada pelo capitalista na sua qualidade de proprietário dos meios de produção. Assim, para Marx, é graças a este sobre-trabalho que os capitalistas obtêm um lucro, que lhes permite acumular capital. Ou por outras palavras, os meios de produção materiais não produzem por natureza do valor, eles só o produzem quando são accionados pelos trabalhadores assalariados e permitem conseguir a mais-valia e assim o lucro. Consequentemente, para Marx, em vez de ser uma coisa, o capital é uma relação social entre as pessoas. Essa relação social corresponde ao que Marx chama «relação de classe».
Para Piketty a compra e a venda da força de trabalho não existem. Mais ainda, ele assimila totalmente o capital ao património, ele chama-lhes na pág. 84 «sinónimos perfeitos» e utiliza-os de modo intercambiável. Para ele, o capital ou património representa o conjunto dos activos não-humanos que podem ser possuÍ­dos ou trocados num mercado. Divide depois esse capital global em capital público e privado. Esta confusão entre capital e património não é inocente. Constatamos ao ler a obra que o autor joga astuciosamente com esta confusão património/capital utilizando um ou outro dos dois termos (que ele acha permutáveis) para dar um sentido particular Í  sua demonstração.

Voltarei aqui mas para já queria lembrar como a lÍ­ngua francesa trata deste assunto.

Segundo o Tesouro da LÍ­ngua Francesa (TLF) a definição do património é a seguinte:

«Conjunto de bens herdados dos antepassados ou reunidos e conservados para serem transmitidos aos descendentes.
Conjunto dos bens e obrigações de uma pessoa (fÍ­sica ou moral) ou de um grupo de pessoas, apreciável em dinheiro e no qual entram os activos (valores, créditos) desse.

Segundo o TLF a definição do capital é a seguinte:

1. Bens monetários possuÍ­dos ou emprestados, por oposição aos lucros que podem produzir.
2. Conjunto dos meios de produção (bens financeiros e materiais) possuÍ­dos e investidos por um indivÍ­duo ou um grupo de indivÍ­duos no circuito económico. Por extensão conjunto dos meios de produção incluindo o trabalho humano»

Vemos assim que o próprio TLF faz uma diferença entre património (o que se possui) e capital) (o que se investe). Com efeito esta assimilação não é inocente capital/património, já que nessas condições o operário ou o assalariado que possui a sua casa está na mesma condição do capitalista como detentor de capital e será globalmente levado em conta na parte capital ou património das estatÍ­sticas. Nessa passe de prestidigitação Piketty apaga mais uma vez a realidade de classe entre os que possuem os meios de produção e os que apenas têm a sua força de trabalho. Para citar Marx e Engels no manifesto do Partido Comunista: «Ser capitalista, é ocupar não apenas uma posição puramente pessoal, mas ainda uma posição social na produção. O capital é um produto colectivo. Só pode ser posto em movimento pela actividade em comum de muitos indivÍ­duos, e mesmo em última análise pela actividade em comum de todos os indivÍ­duos, de toda a sociedade. O capital não é assim uma potência pessoal, é uma potência social.
Voltando Í  relação capital/rendimento Piketty anuncia que o que ele chama a primeira lei fundamental do capitalismo (segundo a sua definição evidentemente).

Alfa = r x beta
r = relação capital/rendimento
Beta = relação capital/rendimento.
Alfa = parte do capital no orçamento nacional

De facto esta igualdade é uma identidade, sempre verdadeira por construção.

Notemos que aqui Piketty utiliza o termo capital e não património.
Mesmo que do meu ponto de vista de cientista esta fórmula não constitua uma lei ela vai servir ao autor para descrever a evolução do capital através dos tempos e do espaço. Nota ainda assim que constitui uma tautologia mas isso não o impede de fazer dela bom uso, que é apenas a relação que estes valores mantêm entre si sem identificar as linhas de força que decorreriam dessa «lei». De passagem, nota que r (taxa de rendimento médio do capital) é a base da análise marxista, juntamente com a baixa tendencial das taxas de lucro, que acrescenta constituir uma predição histórica errónea. Na verdade essas duas afirmações são falsas. O r piketiano não é taxa de lucro, engloba todos os rendimentos do património, qualquer que seja a sua forma jurÍ­dica englobando mesmo as cadernetas de poupança! Por outro lado Marx indica que a baixa tendencial das taxas de lucro é precisamente tendencial, o que está longe da visão dada por Piketty que faz crer que para Marx esta baixa não teria nem contra-tendências nem «acidentes», e segundo uma curva regular levaria Í  morte «térmica» do capitalismo. Vamos ao livro III do Capital onde Marx desenvolve longamente entre outros, estas contra-tendências e acidentes.
O facto de Piketty levar em conta a taxa de rendimento do capital está directamente ligada Í  sua definição do capital. Mistura assim a taxa de lucro e as mais-valias bolsistas ou imobiliárias, mistura o capital que se valoriza na produção e o dinheiro investido nas operações puramente especulativas. Mas, no fundo, tudo isto não reflectirá o crescimento dos capitais que procuram valorizar-se para lá da produção pela especulação? Notemos que estes capitais enormes que se investem na especulação não acrescentam sequer um iota em bens mercantis ou serviços úteis Í  população. Pesam sobre o preço da compra das matérias-primas, dos imóveisÂ… alimentam as bolhas financeiras e a crise.
Para terminar esta parte, gostaria de sublinhar a ligeireza de Piketty quanto Í  análise da repartição mundial do rendimento e factores de convergência que podem aproximá-los. Assim, escreve ele ao falar da dominação económica dos paÍ­ses mais ricos sobre os paÍ­ses pobres: «Em princÍ­pio, esse mecanismo pelo qual os paÍ­ses ricos possuem uma parte dos paÍ­ses pobres pode ter efeitos bons em termos de convergência». Os paÍ­ses que sofreram o domÍ­nio colonial e sofrem o domÍ­nio neocolonial apreciarão esta opinião. Isso opõe-se Í  realidade social e económica de numerosos paÍ­ses pobres cuja libertação do domÍ­nio imperialista é mais do que dolorosa e mortÍ­fera.
É certo que para Piketty pág. 144: «A história do desenvolvimento económico é antes de mais a da diversificação dos modos de vida e dos tipos de bens e serviços produzidos e consumidos». Diz isto sem se rir!

A dinâmica da relação capital/rendimento (segunda parte)

Nesta parte, o autor descreve o que ele chama: «as metamorfoses do capital». Em especial em França e na Inglaterra, sublinha a propósito, a evolução do capital fundiário para o capital imobiliário e industrial. As guerras, a colonização, a escravatura e depois a descolonização desempenharam um papel importante nesse processo.
Afirma na pág. 190: «O capital tinha desaparecido em grande parte em meados do Século XX. São as guerras que no século XX fizeram tábua rasa do passado e deram a ilusão da ultrapassagem estrutural do capitalismo». Confesso não apanhar o que o autor pensa através desta afirmação, salvo se ele confunde (voluntariamente?) rendimento e capital. Mas o rigor não parece ser a virtude essencial do conteúdo deste livro. Pág. 202. — constatando que o Estado desempenha um papel importante no processo de acumulação do capital e dos patrimónios e que o essencial do património é privado o autor faz uma importante descoberta que resume assim: «A França tal como o Reino Unido sempre foram paÍ­ses fundados sobre a propriedade privada e nunca experimentaram o comunismo do tipo soviético».
Segundo ele, a análise do papel da dÍ­vida na acumulação do capital nos séculos XIX e XX atingiu resultados opostos, tendo no século XIX uma dÍ­vida pública que reforça os patrimónios por uma relação positiva dos empréstimos enquanto os liquida pela inflação depois de 1945.
Voltando a esta ideia que o pós-guerra é marcado por uma França de um capitalismo sem capitalistas, nota que as nacionalizações de 1945 conduziram a um papel reforçado do Estado, o que é uma evidência. Mas o autor não se atarda em analisar o porquê polÍ­tico desta situação e o papel que os Estados desempenharam e desempenham para permitir a constituição de monopólios capazes de se inscrever na nova concorrência mundial nas relações de força decorrentes da guerra e da derrota do campo socialista. Seria ainda mais interessante que, ao lado e em concorrência com a trÍ­ade USA, UE e Japão surjam forças estatais capitalistas novas que designamos pelo acrónimo BRICS (Brasil, Rússia, ͍ndia, China e Africa do Sul).
O exame da situação na Alemanha e na América dá-lhe ocasião de mostrar as diferenças nos processos de acumulação, na Alemanha, com as caracterÍ­sticas de um capitalismo dito renano, detido em parte pelos assalariados, as regiões e as associações e que asseguraria uma maior estabilidade do capital. Ora sucede que esta visão das coisas, se está de acordo com a realidade no domÍ­nio das Empresas de Dimensão Intermédia (ETI), não o está no caso do grande capital monopolista industrial e financeiro. Assim o papel dos grandes trusts alemães da quÍ­mica, da metalurgia, da finançaÂ… não é evocado por Piketty.
Admite que a concorrência exacerbada entre as potências europeias está na origem da grande guerra de 1914-18 mas não põe em causa os monopólios e julga-se obrigado a acrescentar que não precisa de concordar com Lénine para chegar a uma tal conclusão.
Piketty chega então ao que chama na pág. 262 a segunda lei fundamental do capitalismo:

Beta = s/g
Beta = capital/rendimento
s = taxas de poupança
g = taxas de crescimento

Pág. 266 esta lei que se torna «uma equivalência contabilÍ­stica» deve ser estudada num longo perÍ­odo e descreve um processo dinâmico da acumulação.
Estudando as variações de beta o autor conclui que, após uma grande depressão devida Í  guerra, depois de 1970 os patrimónios se reconstituÍ­ram e ainda se reconstituem. Desde 1970, assistimos segundo o autor Í  «emergência de um novo capitalismo patrimonial» e isso na base de um crescimento fraco do denominador o que matematicamente faz crescer o beta enquanto as taxas de poupança permanecem elevadas pelo facto da transferência da riqueza pública para a privada pelas privatizações e a subida dos preços dos activos imobiliários e bolsistas. Tudo isto está evidentemente ligado a uma polÍ­tica favorável ao capital. Uma nota de passagem sobre a expressão «capitalismo patrimonial». Se capital e património são sinónimos perfeitos que pode significar esta expressão que poderia também chamar-se: «capitalismo capitalista ou património patrimonial ou ainda património capitalista». Medimos bem a confusão que preside a esta passe de prestidigitação que consiste em confundir capital e património!
Uma questão emerge na pág. 303 — sobre quem possui o quê, alguns paÍ­ses não se encontram na posse de outros? Na hora de uma «mundialização» generalizada esta questão é evidentemente pertinente. Piketty afirma que cada paÍ­s está em grande parte na posse dos outros e que : «os activos e passivos financeiros progrediram ainda com mais força que o valor limpo dos patrimónios. Isso demonstra o desenvolvimento sem precedente das participações cruzadas entre sociedades financeiras e não financeiras de um mesmo paÍ­s e entre paÍ­ses, isso está muito marcado para os paÍ­ses europeus. É uma questão interessante que cobre a realidade do imperialismo mas que não o analisa.
Piketty debruça-se depois sobre a questão da partilha capital/trabalho no Século XXI
Depois de haver constatado as flutuações na partilha capital/trabalho no decurso do tempo na base da equação alfa = r x beta, de que deduz a parte do capital e do trabalho no rendimento nacional, conclui com o aumento do capital desde 1970 e na estabilização a partir de 1990. Mas esse cálculo coloca uma problema sério pois a partilha assim efectuada nada diz sobre a realidade da parte dos salários no valor produzido, nem sobre os lucros capitalistas nem sobre o preço da força de trabalho e sobre o grau de exploração do trabalho assalariado.

Piketty introduz duas noções:
A taxa de rendimento médio do capital e a noção de produtividade marginal do capital (PMC)

A taxa de rendimento médio do capital:

É uma construção abstracta de elementos e de rendimentos diversos (acções 7%, activos diversos 4%, imobiliário 4%, conta de poupança 1,5%…) a taxa de rendimento médio assim calculada agrega colocações diversificadas e dilui os lucros capitalistas ligados Í  colocação em movimento do capital na produção das mercadoras e dos serviços e daqueles ligados Í  especulação.

A noção de produtividade marginal do capital (PCM)

Este PCM é definido pelo valor da produção adicional trazida por uma unidade de capital suplementar. É uma definição idêntica que prevalece para a produtividade do capital marginal do trabalho PML. De facto, estes PMC e PML servem para calcular a quantidade óptima de capital e o trabalho necessário Í  realização de uma mais-valia máxima.
O resultado Produtividade Marginal do Trabalho está na base de todos os trabalhos explicando o desemprego pelo nÍ­vel demasiado elevado dos salários (ver o livro de Laurent Cordonnier «Pas de pitié pour les gueux!»).

PMC e PML ligados Í  produtividade do trabalho e do capital justificam a tese dos economistas ortodoxos. Não há conflitos possÍ­veis na partilha do valor acrescentado entre trabalhadores e detentores do capital já que o lucro não é mais do que a simples remuneração da produtividade do capital e do trabalho. Por outras palavras, PMC e PML justificam que o livre-jogo dos mercados não faça mais que remunerar trabalhadores e detentores de capital ao seu «justo nÍ­vel», o da sua produtividade.
Piketty critica, com razão, estas noções baseadas na teoria de Cobb-Douglas. Calcula na pág. 344 que a conclusão a que levam de uma estabilidade na partilha capital/trabalho: «dá uma visão relativamente serena e harmoniosa da ordem social. Pode conjugar-se com uma desigualdade extrema da propriedade do capital e da repartição dos rendimentos». Se não chega a nenhuma conclusão clara aproveita a ocasião para se demarcar uma vez mais da análise marxista. Assim, volta a esta noção fundamental de «baixa tendencial da taxa de lucro» para apontar que na aproximação de Marx (de quem afirma: «que a sua prosa não é sempre lÍ­mpida»! subentendendo-se que a de Piketty o é), a acumulação infinita que prevê não leva em conta o progresso da tecnologia que favorece um aumento da produtividade e assim «equilibra» o processo de acumulação do capital. Sem isso, afirma o autor, a predição de Marx leva Í  guerra e/ou a impor ao trabalho uma parte mais fraca do rendimento nacional e teria como consequência a revolução. Fazer dizer a Marx o que ele não disse ou torcer os seus enunciados é uma necessidade permanente para Piketty! Veremos que é também uma das motivações polÍ­ticas deste trabalho. Além disso Piketty parece ignorar o mundo real, o dos confrontos inter-imperialistas para a partilha e repartilha do mundo, a conquista de espaços, de recursos, de novos mercados e de força de trabalho a explorar. Parece também ignorar as polÍ­ticas usadas para fazer baixar o preço da força de trabalho e aumentar a exploração dos assalariados.
Por outro lado a baixa tendencial da taxa de lucro não diz que os lucros diminuem em valor absoluto; pelo contrário, aumentam-nos. A luta de classes do século XXI é alimentada por essas realidades que a prosa piketiana não saberia enunciar. Não é a concluir esta parte pela afirmação que «o crescimento moderno (produtividade e conhecimento) permitiu evitar o apocalipse marxista e equilibrar o processo de acumulação do capital, mas sem lhe modificar a estrutura profunda» que Pyketty nos convence do valor da sua argumentação.

A estrutura das desigualdades (terceira parte)

Esta parte não é falha de interesse quanto Í  descrição das desigualdades, quero apenas sublinhar os aspectos mais marcantes e discutir algumas questões de metodologia.
É sobre a questão da definição do conceito de classe que Piketty se esforça para explicar o seu ponto de vista. Trata-se de um problema capital. O autor afirma, justamente, que as definições neste domÍ­nio não são anódinas. Considerando que toda a representação das desigualdades fundada num número de categorias limitadas está votada ao esquematismo já que a realidade social é, segundo ele, uma repartição contÍ­nua, vai elidir a realidade de classe para se agarrar a uma categorização por déciles e centiles de rendimento do capital e/ou do trabalho. Trata-se aÍ­ de um ponto fundamental. Com efeito, agarrar-se a uma visão estatÍ­stica a partir dos rendimentos apaga o lugar de uns e de outros nas relações sociais e em particular nas relações de exploração Í  base do próprio sistema capitalista. Negar a divisão da sociedade em classes e em particular em classes antagónicas, conduz a aceitar essa divisão e a fazer do capitalismo o horizonte inultrapassável da história das relações sociais e, no melhor dos casos, a que Piketty se agarra, preconizar - vê-lo-emos mais tarde - uma humanização do capitalismo, se tal é possÍ­vel dada a própria natureza desse sistema.
Nessas condições, Piketty fica-se por uma visão do pensamento económico clássico e neoclássico da emergência de uma «classe média patrimonial» e, por que não, segundo os seus sinónimos perfeitos que são o capital e o património, uma «classe media capitalista». Afirma na pág. 410 que esta inovação maior do século XXI constitui a principal transformação da repartição de riquezas no século XX. Acrescenta que esta classe média permitiu uma transformação profunda da estrutura social e polÍ­tica. O que constitui uma afirmação audaciosa pois as camadas que chama médias não têm o poder, que já foi confiscado pelo grande capital e, como ele próprio afirma, ficam apenas com as migalhas.
À pergunta «O Século XXI será ainda mais desigual que o Século XIX?», responde pág. 598: «é ilusório imaginar que existe na estrutura do crescimento moderno ou nas leis da economia de mercado forças de convergência que levem naturalmente a uma redução das desigualdades patrimoniais ou a uma estabilização harmoniosa». Este reparo após longos desenvolvimentos sobre o crescimento das desigualdades deveria levar o autor a inquietar-se com as causas profundas desta situação. Mas nada disso sucede e o autor nota mesmo na pág. 613: «Por razões tecnológicas, o capital desempenha hoje um papel central no processo de produção e portanto na vida social». Não se pode escolher mais claramente o seu campo! Porquê referir-se a razões tecnológicas se o capitalismo não coloca em acção as ciências e as tecnologias a menos que elas entrem numa estratégia adequada ao seu desenvolvimento. As razões são com efeito de ordem económica e polÍ­tica.
A partir daÍ­ Piketty vai justificar esta escolha. Como justificar as desigualdades e baseá-las num princÍ­pio racional aceitável pela sociedade. As pág. 671-672 e 674 esclarecem este ponto de vista. Retoma a racionalização polÍ­tica, a da declaração dos direitos do homem, que é o fundamento da emergência do domÍ­nio da classe burguesa capitalista. «Em democracia, para sair da contradição da igualdade proclamada e das desigualdades reais, é vital que as desigualdades decorram de princÍ­pios racionais e universais. As desigualdades devem ser então justas e úteis para todos». Depois, para se fazer entender, acrescenta pág. 674: «A partir do momento em que o capital desempenha um papel útil no processo de produção, é natural que tenha um rendimento». Esta tese lembra os esforços dos neokeynesianos para preconizar um cálculo do custo de trabalho e um do custo do capital e uma outra partilha das riquezas, sem tocar evidentemente no próprio sistema capitalista. Esta concepção alimenta mesmo hoje o pensamento teórico das confederações sindicais em França e na União Europeia.
Colocar-se do lado do capital não tolda a lucidez de Piketty, já que se interroga sobre a evolução da progressão das desigualdades nos seguintes termos, pág. 685: «Não arriscam as forças da mundialização financeira a levar, nos séculos que se abrem, a uma concentração do capital ainda mais forte do que todas as observadas no passado, se é que o caso não é já esse?» SerÍ­amos tentados a dizer esperar 685 páginas para uma tal observação sujeita os nervos do leitor a rude prova, mas podemos também observar a Piketty que uma leitura um pouco mais atenta de Marx tê-lo-ia convencido que, longe de uma visão apocalÍ­ptica, Marx tinha claramente previsto este fenómeno de concentração do capital e que Lénine juntou uma camada Í  espessura dessa observação ao descrever a formação de uma fase imperialista ligada Í  fusão do capital financeiro e industrial na constituição de monopólios. Realidades e fenómenos que inegavelmente aceleraram nos últimos decénios.
Perante esta dinâmica de concentração do capital Piketty volta na pág. 701 Í  sua proposição central, a de um imposto progressivo sobre o capital a nÍ­vel mundial para permitir contrariar eficazmente essa dinâmica.
Para atenuar o «choque» desta perspectiva afirma que: «por mais justificadas (por quem?) que sejam do inÍ­cio, as fortunas multiplicam-se por vezes para lá de qualquer limite e de toda a justificação racional possÍ­vel em termos de utilidade social». Estamos em plena moralização e a sequência vai mostrar os limites da audácia piketiana!

Regular o capital no século XXI (quarta parte)

Pág. 751 retoma a ideia da necessidade de uma superação do capitalismo para o regular antes que chegue uma grande catástrofe. Piketty coloca a seguinte questão pág. 762: «Que instituições polÍ­ticas poderiam permitir regular de modo simultaneamente justo e eficaz o capitalismo patrimonial mundializado do século?». Esta questão leva a outra: «que estado social para o séc. XXI» e mais precisamente «qual o papel do poder público na produção e na repartição das riquezas e na construção de um estado social adaptado ao século XXI.» Para lá do que aparecia como o cúmulo das boas intenções: «modernizar o estado social e não o desmantelar» encontramos todo o discurso actual sobre a reforma, cujo conteúdo está claramente orientado no sentido dos interesses do grande capital. É só ver o conteúdo da lei de modernização dita lei Mácron que a coberto de modernidade liquida áreas inteiras de conquistas sociais dos assalariados. Nesta «modernização» é fácil encontrar os temas em voga:

Mistura público/privado

Reforma das pensões que admite, como os sucessivos governos, que elas devem continuar por repartição, mas de que é necessário prolongar a duração de contribuição e modificar as base de cálculo. Afinal nada de original!!!

Mais Europa económica e polÍ­tica

Perante os desregulamentos que julga nefastos para a manutenção da ordem social Piketty insiste fortemente na questão da fiscalidade. E retoma a sua ideia de um imposto mundial sobre o capital. Mas, medindo a dificuldade e a ausência de credibilidade de uma tal proposta quando sabemos das somas tragadas pelos paraÍ­sos fiscais e da complexidade dos mecanismos bancários que visam poupar Í s empresas o pagamento do imposto, Piketty considera a sua própria proposta como ilusória, como o é de forma idêntica a famosa taxa Tobin, cara aos reformistas polÍ­ticos. Nessas condições, aproveita para incluir no terreno da mais Europa necessária segundo ele para conseguir regular o capital. Evidentemente que não se coloca a questão da natureza da construção europeia, a de uma agregação imperialista ao serviço dos monopólios da qual os povos sofrem a dolorosa experiência.
Ainda sobre o imposto, Piketty, pág. 840 atribui-lhe um objectivo de transparência democrática e financeira. Afirma que esse imposto mundial será modesto em termos de receita. Não é, segundo ele, para: «financiar o Estado social mas para regular o capitalismo». Os capitalistas devem ficar mortos de medo perante uma tal perspectiva!
A segunda parte é consagrada Í  questão da dÍ­vida. Uma ocasião para elaborar uma grande explicação sobre a necessidade de dar um Estado ao Euro, ele que é a única moeda sem Estado. Trata-se claramente de uma apologia para uma Europa federal criando «um parlamento orçamental da zona euro». Esta Europa estaria assim necessariamente totalmente integrada no plano polÍ­tico.
Para acabar verdadeiramente mas «in cauda venenum» Piketty afirma que «o mercado e o voto são apenas duas maneiras polares de organizar as decisões colectivas» e para ter uma boa medida reformadora acrescenta na pág. 940: «para que a democracia chegue um dia a retomar o controlo do capitalismo, é preciso primeiro partir do princÍ­pio que as formas concretas da democracia e do capitalismo estão ainda e sempre a reinventar-se». Podemos medir nesta afirmação a impossibilidade de conseguir tal coisa mas na verdade não é esse o objectivo de Piketty nem dos seus mandatários. Tudo isso coloca a questão: Porquê o livro de Piketty, que interesses serve?

Porquê o livro de Piketty, quais os interesses que serve?

Na crise profunda do sistema capitalista, na luta encarniçada que o capital trava para restabelecer as taxas de lucro, os ideólogos burgueses, conscientes da rejeição das suas medidas polÍ­ticas por uma parte crescente da população, estão Í  procura de um compromisso social que lhes permita neutralizar a luta de classes ou desviá-la para que in fine a dominação do capital permaneça. Nessa luta, é preciso a todo o custo mostrar que não há outra saÍ­da senão aceitar a lei do capital. Assim, é necessário sistematicamente desclassificar as análises apoiando-se na existência das classes sociais e seu carácter antagónico no sistema capitalista, e substitui-lo por uma análise em termos de grupos sociais. É também necessário «purificar» a economia da polÍ­tica e afastá-la de uma análise global da sociedade e do seu movimento.
É preciso distinguir o papel do Estado do do capital, dando a ilusão de que o Estado é neutro, acima da confusão. Donde os discursos sobre o Estado estratega. Nessas condições, Marx e os marxistas devem ser desconsiderados e afastados para as fileiras dos doces sonhadores, e na pior das hipóteses para as dos teóricos do «totalitarismo». Expurgar a luta de classes da paisagem é evidentemente uma tarefa árdua, mas necessária do ponto de vista do capital. Isto necessita de se apoiar em organizações sociais, especialmente sindicais e politicas, que pratiquem a colaboração de classe. É a esta necessidade imperiosa que responde uma demanda de «teorização» do movimento da sociedade, do ponto de vista do capital, claro está. É este finalmente o conteúdo polÍ­tico do livro de Piketty. Ele dá uma visão da realidade, que é difÍ­cil ignorar, a das desigualdades, a da sua perenidade, uma visão do seu aprofundamento ao mesmo tempo que o capital se concentra. Simultaneamente, nega toda a realidade de classe e remete para «soluções» que ignoram a realidade da exploração capitalista. Nesse sentido o livro de Piketty é útil para uma variante polÍ­tica visando a justificar a aceitação da polÍ­tica do capital.

Indo ao fundo da questão, haverá uma via reformista possÍ­vel?

Esta parte da minha exposição está destinada a abrir um debate que se vai centrar na questão mais fundamental da possibilidade de uma via reformista, que vise transformar e moralizar o capitalismo.
Vou apresentar o meu ponto de vista sem demora e vou responder brutalmente «Não, não há»! Mas, dizem alguns, sendo a relação de forças como é, é razoável a curto prazo uma linha de classe, e que apoio utilizar para reconstruir uma consciência de classe do lado dos trabalhadores? Vou tentar responder.
Se analisarmos rapidamente o que se passa actualmente na Europa, medimos bem o impasse que representa a procura de um compromisso polÍ­tico com as forças do capital. É a experiência que faz o povo grego quando o seu governo afirma defender simultaneamente os seus interesses e colocar-se do ponto de vista da NATO e da Europa.
Para manter o poder e manter o sistema de exploração capitalista, para desarmar ideologicamente os trabalhadores mascarando as causas da crise, as classes burguesas na Europa recompõem permanentemente as forças polÍ­ticas quer de direita quer de esquerda. É assim cada vez mais necessário que para manter ou seja restabelecer as taxas de lucro, os capitalistas devam forçar cada vez mais os recuos sociais e a exploração do trabalho assalariado. Fazer baixar o preço da força de trabalho e aumentar a exploração dos povos é o seu grande objectivo, aquele que jamais perdem de vista. Esta recomposição das forças polÍ­ticas visa a aspirar e desviar o descontentamento geral pelas medidas anti-sociais tomadas pelos governos. Ela toma formas diversas de acordo com os paÍ­ses. Mas há caracterÍ­sticas comuns a registar. Assim, a divisão da sociedade em classes antagonistas (o assalariado explorado e o capital explorador) é substituÍ­da pelo conceito dos que estão em cima e dos que estão em baixo. Esse conceito, que apaga as diferenças de classe, é utilizado de formas diversas. O mesmo acontece ao capitalismo que é baptizado de novo como «neoliberalismo». Esta designação tem a virtude de poupar o próprio sistema e, se permite fustigar as «finanças», sobretudo não toca na natureza do capitalismo. É de bom-tom condenar o «neoliberalismo» e as finanças e dar assim a entender que a crise é apenas uma desregulação do capitalismo.
Ao atacar o «capitalismo neoliberal» todas estas forças omitem qualquer crÍ­tica sobre a natureza capitalista e imperialista da construção europeia. Esse discurso é o de toda a esquerda europeia, dita radical ou não, que afirma a possibilidade de uma reorientação da UE para mais «social».
Contudo, a natureza imperialista da UE é clara, os factos mostram-no bem. Sob a égide da NATO, os paÍ­ses europeus participam em verdadeiras guerras de conquista e de destruição de nações: Afeganistão, Jugoslávia, Ucrânia, Iraque, LÍ­bia, SÍ­ria, apoio indefectÍ­vel ao Estado de Israel, intervenção em ́fricaÂ…
Sejamos claros, sem uma análise rigorosa da natureza imperialista da União Europeia não é evidentemente possÍ­vel começar a luta contra o próprio capitalismo. Agarrar-se a fórmulas gerais como a saÍ­da do Euro e da Europa, sem atacar a natureza capitalista da UE e dos Estados que a compõem será apenas o espelho da fórmula vazia da transformação da Europa em Europa social.

Conclusão

Piketty apercebe-se e de certo modo ilustra o grau de parasitismo do capitalismo.
Esta situação de crise sistémica exacerba os confrontos inter-imperialistas para a partilha e a repartilha do mundo. Arrasta consigo conflitos armados conduzidos pelo imperialismo cujo preço é pago pelos povos. Esta situação é a causa de recuos sociais e democráticos sem precedentes, e ameaça a paz mundial. Nessas condições, a impotência de Piketty em propor uma saÍ­da que não seja a do rearranjo do capitalismo pela fiscalidade, a educação e a investigação, discurso recorrente dos reformistas de todos os matizes, tem algo de patético. Este rearranjo do capitalismo releva mais do sonho do que a realidade. É irrealista e a experiência demonstra-o todos os dias.
O único realismo, na minha opinião, partindo da análise das condições da luta de classes, é a luta pela emancipação dos trabalhadores e portanto a expropriação do capital.

*Conferência de Michel Gruselle em 5 de Março de 2015

Tradução: Manuela Antunes

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