O escândalo dos Agro-combustÍ­veis nos paÍ­ses do Sul

François Houtart*    04.Dic.09    Colaboradores

François Houtart
“Dizer que os agro-combustÍ­veis são uma solução para o clima está igualmente na moda. É verdade, que a combustão dos motores emite menos anidrido carbónico para a atmosfera, contudo, quando se considera o ciclo completo da produção da transformação e da distribuição do produto, o balanço é mais atenuado. Em certos casos, converte-se em negativo em relação Í  energia fóssil.”

A ideia de espalhar a cultura dos agro-combustÍ­veis pelo mundo, e particularmente, pelos paÍ­ses do sul, é desastrosa. É uma ideia que faz parte de uma perspectiva global de solução para a crise energética. Nos próximos 50 anos teremos que mudar de ciclo energético, passando da energia fóssil, que cada vez é mais rara, a outras fontes de energia. No curto prazo é mais fácil utilizar o que é imediatamente rentável, quer dizer, os agro-combustÍ­veis. Esta solução, ao reduzir-se as possibilidades de investimento e esperar por rendimentos rápidos, parece ser a mais solicitada, enquanto se desenvolve a crise financeira e económica.

Como sempre, num projecto capitalista, ignora-se aquilo que os economistas chamam de «condicionalismos externos», quer dizer, que não entram dentro do cálculo do mercado e para o caso que nos preocupa, os prejuÍ­zos ecológicos e sociais. Para contribuir com uma percentagem de 25 a 30% da procura, a solução da crise energética teria que utilizar centenas de milhões de hectares de terras cultiváveis para a produção de agro-energia, na sua maior parte no sul, pois no norte não há suficiente superfÍ­cie cultivável. E, igualmente, haverá necessidade, segundo certas estimativas, que expulsar das suas terras pelo menos 60 milhões de camponeses O preços destes «condicionalismos externos», não pagos pelo capital mas pela comunidade e pelos indivÍ­duos, é desmesurado.

Os agro-combustÍ­veis são produzidos sob a forma de monoculturas, destruindo a biodiversidade e contaminando os solos e a água. Pessoalmente, andei quilómetros pelas plantações do Choco, na Colômbia, e não vi nem uma ave, nem uma borboleta, nem um peixe rios rios devido Í  utilização de grandes quantidades de produtos quÍ­micos , como fertilizantes e pesticidas. Diante da crise hÍ­drica que afecta o planeta, a utilização da água para produzir etanol é irracional. Com efeito, para se obter um litro de etanol a partir do milho utiliza-se entre 1200 e 1300 litros de água. A cana de açúcar, também necessita de enormes quantidades de água. A contaminação dos solos e da água atinge nÍ­veis até agora desconhecidos, ocasionando o fenómeno do «mar morto» nas desembocaduras dos rios (20 km2 nas desembocaduras do Mississippi, em grande medida causado pela extensão das monoculturas de milho destinadas ao etanol). A extensão destas culturas acarreta uma destruição directa ou indirecta (pela deslocação de outras actividades agrÍ­colas e pecuárias) dos bosques e florestas, que são como poços de carbono devido Í  sua capacidade de absorção.

O impacto dos agro-combustÍ­veis sobre a crise alimentar já foi comprovado. Não só a sua produção entra em conflito com a produção de alimentos, num mundo, segundo a FAO, em que mais de mil milhões de pessoas sofrem de fome, mas também foi um elemento importante de especulação sobre a produção alimentar nos anos 2007 e 2008. Segundo uma informação do Banco Mundial, 85% do aumento dos preços dos alimentos lançou, em dois anos, mais de 100 milhões de pessoas para baixo do limiar da pobreza (o que significa fome) em consequência do desenvolvimento da agro-energia. Por este motivo, Jean Ziegler, durante o seu mandato como Relator Especial das Nações Unidas para o Direito Í  Alimentação, classificou os agro-combustÍ­veis como «crime contra a humanidade» e o seu sucessor, o belga Olivier De Schutter, pediu uma moratória de 5 anos para a sua produção.

A extensão das monoculturas significa também a expulsão de muitos camponeses das suas terras. Na maioria dos casos, as expulsões realizam-se através de fraudes ou pela violência. Em paÍ­ses como a Colômbia e a Indonésia recorrem Í s Forças Armadas e aos paramilitares, que não hesitam em massacrar os defensores recalcitrantes das suas terras. Milhares de comunidades autóctones, na América Latina, em ́frica e na ́sia, são desapossadas dos seus territórios ancestrais. Dezenas de milhões de camponeses já foram deslocados, principalmente no sul, em função do desenvolvimento de um modo de produção agrÍ­cola e da concentração da propriedade da terra. O resultado de tudo isto cifra-se numa urbanização selvagem e numa pressão migratória, tanto interna como internacional.

É necessário igualmente notar que o salário dos trabalhadores é muito baixo e que as condições de trabalho são geralmente infra-humanas devido Í s exigências de produtividade. A saúde dos trabalhadores é também afectada gravemente. Durante a sessão do Tribunal Permanente dos Povos sobre as empresas multinacionais europeias na América Latina, realizada paralelamente Í  Cimeira Europa-América Latina, em Maio de 2008, em Lima, foram apresentados inúmeros casos de crianças com mal formações, devido Í  utilização de produtos quÍ­micos nas monoculturas de banana, soja, cana do açúcar e palmeiras.

Dizer que os agro-combustÍ­veis são uma solução para o clima está igualmente na moda. É verdade, que a combustão dos motores emite menos anidrido carbónico para a atmosfera, contudo, quando se considera o ciclo completo da produção da transformação e da distribuição do produto, o balanço é mais atenuado. Em certos casos, converte-se em negativo em relação Í  energia fóssil.

Se os agro-combustÍ­veis não são uma solução para o clima, se o não são de uma maneira marginal para mitigar a crise energética, e se eles acarretam importantes consequências negativas, tanto sociais como ambientais, temos o direito de perguntar porque é que eles têm tanta preferência. A razão é que a curto e médio prazo aumentam de maneira considerável, e rapidamente, a taxa de ganância do capital. É por isto que as empresas multinacionais do petróleo, do automóvel, da quÍ­mica e do agro-negócio se interessam pelo sector. Eles têm como sócios ao capital financeiro (Geoge Soros, por exemplo) os empresários e latifundiários locais, herdeiros da oligarquia rural. Então, a verdadeira função da agro-energia é, com efeito, ajudar a uma parte do capital a sair da crise e a manter, ou eventualmente aumentar, a sua capacidade de acumulação. Com efeito, o processo agro-energético caracteriza-se por uma sobreexploração do trabalho, pela ignorância dos condicionalismos externos, pela transferência de fundos públicos para o privado, e tudo isso permitindo lucros rápidos, mas também uma hegemonia das companhias multinacionais, e uma nova forma de dependência do sul em relação ao norte, tudo apresentado com a imagem de benfeitores da humanidade, pois produzem «energia verde». No que concerne aos governos do sul, vêem aÍ­ uma fonte de divisas úteis de manter, entre outras, o nÍ­vel de consumo das classes privilegiadas.

Por conseguinte, a solução é de reduzir o consumo, sobretudo do norte e de investir em novas tecnologias (solar, especialmente). A agro-energia não é um mal em si e pode contribuir para soluções interessantes a nÍ­vel local, se respeitar a biodiversidade, a qualidade dos solos e da água, a soberania alimentar e a agricultura camponesa, isto é, o contrário da lógica do capital. No Equador, o Presidente Correa teve a coragem de parar a exploração do petróleo na reserva natural de Yasuni. Esperamos que os governos progressistas da América Latina, da ́frica e da ́sia, tenham a mesma firmeza. Resistir no norte como no sul Í  pressão dos poderes económicos é um problema polÍ­tico e ético. É por isso, que denunciar o escândalo dos agro-combustÍ­veis no sul, constitui um dever.

* Catedrático da Universidade Católica de Lovaina, fundador do Centro Tricontinental

Tradução de João Manuel Pinheiro

Gostaste do que leste?

Divulga o endereço deste texto e o de odiario.info entre os teus amigos e conhecidos