Fim de qual ciclo?

AtÍ­lio Boron    01.Jul.19    Outros autores

O imperialismo e a reacção doméstica sul-americana conseguiram sucessos a partir de meados da década. Houve que falasse do “fim de um ciclo”. Mas não só esses sucessos não foram generalizados como vários dos governos assim instalados passam por grandes dificuldades e vêm desmoronar-se o apoio que terão tido.

Foram muitas e muitos os que a meio desta década e em coincidência -¿casual, involuntária? - com o desenvolvimento da ofensiva restauradora do império correram a anunciar o “fim do ciclo” progressista na América Latina. A derrota do kirchnerismo em 2015 e o ilegal e ilegÍ­timo derrube de Dilma Rousseff em 2016 bem como o grotesco julgamento e prisão de Lula apareciam como sinais inconfundÍ­veis do inÍ­cio de um novo ciclo histórico.

Só que os profetas desta epifania nunca se aventuraram a arriscar algo muito elementar: o que vinha a seguir? Terminava um ciclo, bem, mas: significava isso que outro começava? Silêncio absoluto. Duas alternativas. Ou bem aderiam Í s teses de Francis Fukuyama sobre o fim da história, coisa absurda entre todas; ou como insinuavam os mais audaciosos, com fingida preocupação, estávamos no começo de um longo ciclo de governos de direita. Digo fingida porque, hipercrÍ­ticos com os governos do ciclo supostamente em bancarrota in pectore preferiam a chegada de uma direita pura e dura que, supostamente, acentuaria as contradições do sistema e magicamente abriria a porta a quem sabe lá o quê … porque, surpreendentemente, nenhum desses acerbos crÍ­ticos do ciclo progressista falava de revolução socialista ou comunista, ou da necessidade de aprofundar a luta anti-imperialista. Portanto, o seu argumento meramente retórico e académico morria na mera certificação do suposto encerramento de uma etapa e nada mais.

Ora bem: todos esses discursos se desmoronaram abruptamente nas últimas semanas. Na verdade, vinham já em queda desde o inesperado triunfo de López Obrador no México e sua tardia incorporação ao “ciclo progressivo”. A sua vitória demonstrava que, embora gravemente ferido, este não havia morrido. O debacle da macrismo e a sua quase certa derrota nas eleições presidenciais em Outubro deste ano e a recente revelação das ilegais e imorais chicanas articuladas entre o corrupto juiz Sergio Moro e os promotores do poder judicial brasileiro para enviar Lula para a prisão assentam um duro golpe nos dois esteios sobre os quais repousava o inÍ­cio do suposto ciclo “pós-progressista”.

Na Argentina, os macristas esperam o pior, sabendo que apenas um milagre os salvaria de uma derrota. E Bolsonaro está Í  beira do abismo em resultado da crise económica no Brasil e por ter designado como super-ministro da justiça a um iletrado sem escrúpulos que oferece um retumbante desmentido Í  sua pretensão de oferecer um governo transparente, impoluto, inspirado nos mais elevados princÍ­pios morais do cristianismo que os pastores da igreja evangélica lhe inculcaram quando - apropriada e oportunisticamente – o rebaptizaram no rio Jordão como Jair “Messias” Bolsonaro.

A divulgação de conversas por WhatsApp entre Moro e os promotores revelados por The Intercept , além das múltiplas denúncias de corrupção contra ele e seus filhos, revelam que este santo varão chamado a lavar a polÍ­tica brasileira dos seus pecados nada mais é do que o chefe de um bando de delinquentes, um impostor, um charlatão de feira, um energúmeno cujos dias no Palácio do Planalto parecem estar contados. E manter Lula na prisão será cada vez mais difÍ­cil tendo em conta da farsa jurÍ­dica perpetrada contra ele e exibida agora em plena luz do dia. E Lula livre é uma das principais ameaças para o actual governo do Brasil.

Será que apenas a Argentina e o Brasil não estão a cumprir as previsões dos teóricos do “fim do ciclo”? Não. O que dizer sobre o desastre colombiano, uma verdadeira “ditamole” pseudo-constitucional onde, de acordo com o tradicional jornal El Tiempo “durante os primeiros 100 dias de mandato do presidente Ivan Duque houve 120 assassÍ­nios de lÍ­deres,” um banho de sangue comparável ”‹”‹ou pior do que nas ditaduras que assolaram paÍ­ses como Argentina, Brasil, Chile e Uruguai nos anos setenta e oitenta (https://www.eltiempo.com/colombia/otras-ciudades/el-mapa-de-los-lideres-sociales-asesinados-en-colombia-184408).

E que dizer do Peru, onde todos os ex-presidentes desde 1980 (Alberto Fujimori, Alejandro Toledo, Ollanta Humala, Pedro Pablo Kuczynski e Alan GarcÍ­a estão presos, fugitivos ou suicidados o que, juntamente com a catástrofe colombiana e a deserção do México humedeceu irremediavelmente a pouca pólvora que permanecia nas mãos do “Cartel de Lima” como lacaio regional do CalÍ­gula norte-americano.

Mesmo caso chileno não está isento de dúvidas, já que a deslegitimação do seu sistema polÍ­tico atingiu nÍ­veis sem precedentes. Com efeito, dada a capitulação escandalosa desta frágil democracia face aos grandes interesses corporativos, em cujo nome exclusivamente se governa, a maioria da população adulta optou pelo abstencionismo eleitoral com o consequente esvaziamento do projeto democrático.

Em poucas palavras: o que supostamente viria uma vez consumado o esgotamento do “ciclo progressista” é pelo menos problemático e está longe de constituir uma alternativa que supere o “extractivismo” ou o “populismo” que supostamente teriam caracterizado os governos anteriores.

O precedente não deve ser interpretado como uma afirmação de que o ciclo iniciado com o triunfo de Chávez nas eleições presidenciais de Dezembro de 1998 na Venezuela prossegue a sua marcha imperturbável. Muito sofreu nos últimos tempos. A alteração no clima económico internacional joga contra ele; a obra de destruição levada a cabo por Macri, Piñera, Duque, Bolsonaro e a infame traição de Moreno, essa verdadeira ” armada Brancaleone ” que Trump e o seu antecessor instalaram na América Latina, minou muitos dos avanços do passado.

Mas a realidade é teimosa e um revés não é uma derrota, como também não o é um retrocesso pontual. A velha toupeira da história prossegue incansavelmente o seu trabalho, favorecida pela exasperação das contradições de um capitalismo cada vez mais selvagem e predatório. A longa marcha pela emancipação dos nossos povos - que nunca foi linear e invariavelmente ascendente - continua e, eventualmente, acabará por expulsar esses governos entreguistas, reaccionários e sipaios que hoje afligem a América Latina e nos envergonham perante o mundo. E não haverá que esperar muito para o ver.

Fonte: https://www.lahaine.org/mundo.php/ifin-de-cual-ciclo

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