Os desafios dos movimentos sociais Latino-Americanos

“A realidade latino-americana e a luta de classes são inseparaveis. Não podemos esconder o que de fato existe. Mas cada qual, Í  luz do seu olhar ideológico, pode dar a interpretação e a descrição que quiser para essa mesma realidade. Essa é a unica forma de explicar porque, mesmo entre as forças sociais e polÍ­ticas da esquerda, há tantas diferenças na análise da realidade atual.”

Nosso continente esta vivendo um novo perÍ­odo, na sua trajetória histórica da luta de classes e de enfrentamento com o império. Há ainda muita complexidade e pouca clareza para compreendermos as caracterÍ­sticas e a natureza desse perÍ­odo que estamos vivendo. Alguns de nós, vêem a revolução ai na esquina. Talvez influenciados pela coragem radical dos discursos do nosso querido Chavez ou pelos avanços reais da mobilização de massas na BolÍ­via. E que portanto, o imperialismo já está derrotado e trata-se agora de avançar para o socialismo continental. Outros, ao contrário preferem classificar Chavez e Evo de populistas, estariam traindo as forças das massas mobilizadas em continente, que querem avançar, mas encontrariam barreiras nesses governos. E outros ainda, crêem que o único caminho possÍ­vel agora na América Latina é o caminho das reformas, do diálogo, da ponderação, para ir acumulando forças e mudanças pela institucional e de forma gradual.

Stédile
A realidade latino-americana e a situação da luta de classes são inseparáveis. Não podemos esconder o que de fato existe. Mas cada qual, Í  luz de seu olhar ideológico, pode dar a interpretação, a descrição que quiser a essa mesma realidade. Essa é a única forma de explicar porque, mesmo entre as forças sociais e polÍ­ticas de esquerda, há tantas diferenças na analise da realidade atual.

1. -Uma interpretação do perÍ­odo que vivemos.

Temos feito um esforço, modesto e ainda aquém do necessário, na Via Campesina e no Movimento dos Sem Terra para tentarmos entender da melhor forma possivel o que está de fato acontecendo na América Latina. E nesse espaço gostaria de compartilhar com os companheiros e companheiras dos demais movimentos as reflexões coletivas que temos feito.
De fato, nosso continente vive um perÍ­odo histórico novo, diferente de outros momentos. A grosso modo, poderÍ­amos dizer que vivenciou vários perÍ­odos da historia recente do século XX definidos por caracterÍ­sticas bem limitadas.

O primeiro perÍ­odo poderÍ­amos dizer o que vai da crise do inicio do século XX até o final da segunda guerra mundial.
Assim, a partir da grande crise enfrentada pelo capitalismo a nÍ­vel internacional, que resultou em duas guerras mundiais, inter-imperialistas, por disputas de mercado,e um perÍ­odo da luta de classes no nosso continente marcado por:
- Falência dos modelos agro-mineral exportador e implementação de modelos de industrialização dependente, ainda que atrasadas.
- Nascimento de uma burguesia industrial, local, com interesses próprios, porem associados aos interesses da burguesia internacional.
- Hegemonia de governos populistas, que adotaram então regimes polÍ­ticos reformistas e procuraram acelerar os processo de desenvolvimento econômico, baseados na creença do desenvolvimento nacional, porem dependente do capital estrangeiro.
- Esse modelo trouxe um enorme crescimento econômico para alguns paises, representou o nascimento de uma classe operária, e com ela a ideologia socialista, mas trouxe como conseqüência a urbanização violenta de nossas sociedades, e um modelo altamente concentrador de riqueza e renda.
- Foi nesse perÍ­odo que nasceram também as primeiras bases para uma ideologia socialista com raÍ­zes latinas, com as contribuições teóricas e práticas de Jose MartÍ­, Sandino, Mariategui, e as experiências de organizações socialistas e comunistas entre os operários.

Um segundo perÍ­odo pode-se marcar entre a segunda guerra mundial e a revolução nicaragüense. Nesse perÍ­odo, houve:
- o fracasso do desenvolvimento de um modelo de capitalismo nacional, e da hegemonia das burguesias locais.
- A derrota do nazi-fascismo fortaleceu a esperança do socialismo.
- Surgiram grandes mobilizações de massa em todo conitnente.
- Surgiram muitos movimentos revolucionários (a svezes nem socialistas eram) mas que defendiam o poder para o povo.
- Tivemos um ascenso do movimento de massas e das idéias revolucionarias, que tiveram seu ápice nas revoluções da BolÍ­via (1952) Guatemala (1956) Cuba (1959) Republica Dominicana (1965), Chile (1970) e nas disputas avançadas que houve em diversos paises como Argentina, Brasil, Peru, e em toda América Latina, que se encerrou com a vitória dos sandinistas em 1979.

Um terceiro perÍ­odo foi de total hegemonia do capital sobre nosso continente, de derrota da classe trabalhadora e de descenso do movimento de massas. O capital imperialista realizou dois movimentos complementares nesse terceiro perÍ­odo histórico que vem da década de 70 até o final do sécuilo.
- Primeiro para enfrentar a onda revolucionária implantou regimes militares na maioria de nossos paÍ­ses.
- Em alguns paÍ­ses do Caribe e da América Central houve intervenções militares imperialistas diretamente, com invasões armadas e estabelecimento de bases militares, em quase todos eles.
- No meio do processo, a partir do final da década de 80, abandonaram os regimes militares e imoplantadas democracias de fachada, o imperralismo impôs o modelo neoliberal. Este para nossas economias foi a subordinação aos interesses do capital internacional, agora hegemonizado pelo capital financeiro e por grandes corporações transnacionais.
- Essa fase foi um longo perÍ­odo de derrota para a classe trabalhadora e para o povo de todo continente, marcado pelas derrotas da revolução nicaragüense, pela imposição dos acordos de paz, na América Central, e mesmo derrotas eleitorais importantes no Brasil e no Peru, que garantiramhegemonia total ao capital financeiro e internacional.
Quando tudo parecia consolidado, e Fukuyama tinha prenunciado o final da historia com a vitória total do capital internacional, eis que o velho Marx tinha razão, e as crises cÍ­clicas de acumulação do capital, manifestaram-se com mais força e a nÍ­vel internacional. E as reações populares passaram também a ter um efeito internacional ainda maior. As perversidades sociais desse modelo neoliberal ficaram mais expostas, o povo começou a se dar conta de que seus problemas da pobreza, da desigualdade social, da falta de terra, do desemprego, da falta de moradia e escola, só se agravaram nessas duas décadas de domÍ­nio completo.

Então podemos dizer que a partir do inicio do seculo XXI entramos num perÍ­odo de nossa historia continental. E se antes, os perÍ­odos tinham uma certa variação local, influenciada pela correlação de forças nacionais e o grau de acumulo polÍ­tico da classe trabalhadora em cada paÍ­s, agora, também temos um componente a mais,a correlação de forças base a ter cada vez mais um caracter também continental, e isso explica porque por vezes pequenas mudanças num único paÍ­s acabam influenciando a correlação de forças no continente.

De 2000 para cá…
Algumas caracterÍ­sticas principais desse novo perÍ­odo:
- começamos com algumas manifestações de resistência popular, mas que tiveram uma simbologia, de rebeldia e de unidade continental muito grande, como foram as a revolta popular em Chiapas (95) as mobilizações em Seatle (99) as revoltas populares no Equador, BolÍ­via e Argentina, durante os anos de 2000 e 2001, o inicio das realizações dso Fórum Social Mundial, que marcaram um processo de unidade das forças populares frente ao neoliberalismo.
- Tudo isso desencadeou um processo em que o povo de nossos paÍ­ses, as forças populares e sobretudo as forças polÍ­ticas que hegemonizaram esses processos, priorizaram a luta eleitoral, como campo de disputa e derrota do neoliberalismo. E o povo, como que entendendo que ainda estava em descenso do movimento de massas, e em desvantagen na correlação de forças, aceitou essa saÍ­da, colocando suas energias na via institucional. Praticamente em todas as eleições ocorridas no continente a partir de 2002, que tiveram candidatos neo-liberais e candidatos anti-neoliberais, os que se diziam anti-neoliberais ganharam as eleições, ainda que depois alguns deles se revelaram no poder, tambem neoliberais. Felizmente o povo voltou a derrota-los nas ruas, como aconteceu na Argentina, BolÍ­via e Equador.
- Assim, o nosso perÍ­odo histórico que tem sua prioridade na via institucional resultou em três tipos de governantes, bem claros. Temos os governos progressistas e de esquerda, representados por Cuba, Venezuela e BolÍ­via. Eles enfrentam diretamente os interesses do imperialismo e do capital neoliberal. Depois temos governos progressistas, porem moderados. Representados por Brasil, Argentina, Uruguai, Equador.. Esses governos adotam por uma polÍ­tica ambÍ­gua em relação ao imperialismo e ao capital neoliberal. As vezes enfrentam-nos, outras optam por cedencias ao neoliberalismo. E num terceiro bloco temos os governos conservadores, que se somam aos interesses do capital neoliberal e do império no continente, representados pelos governos do Chile, Paraguai e da Colômbia. E no norte, capitaneados pelo México, e praticamente todos os governos da América central.

Essa situação é o resultado da atual correlação de forças no continente. Não estamos assistindo a uma ascensao do movimento de massas e muito menos das idéias revolucionarias. Estamos num estagio de resistência popular, de acumulo de forças, de disputa, com um inimigo ainda muito poderoso,interna e internacionalmente. Mesmo no caso Boliviano, em que as massas lograram elevado nviel de mobilização que resultou na vitória eleitoral de Evo Morales, com tudo o que ele representa, em termos de correlação de forças para mudanças reais na economia e na sociedade, o povo boliviano enfrenta condições adversas pelo elevado nÍ­vel de poder da classe burguesa, a nÍ­vel interno, com apoios internacionais.

2. DESAFIOS PARA OS MOVIMENTOS SOCIAIS.

Sem a pretensão de descrever formulas, e muito menos recomendar lições para outros companheiros e companheiras de outros movimentos, queremos compartilhar nossas preocupações, no sentido de que é necessário compreender a verdadeira natureza da correlação de forças no atual perÍ­odo, para saber dar os passos, de acordo com o tamanho das pernas. E com isso ir acumulando forças, para as mudanças estruturais necessárias, que rompam com o neoliberalismo e com o imperialismo. Mas isso não é apenas um mero ato de boa vontade polÍ­tica. Depende fundamentalmente de acumulo de forças reais, da classe trabalhadora, do povo, para poder implementá-las. DaÍ­ que então, em nossos movimentos temos ainda inúmeros desafios a serem enfrentados, para colocarmos nossas energias e conseguirmos acumular forças, para um outro perÍ­odo histórico, que está ainda dependente da ascensao da luta de massas a nÍ­vel continental. Para que esse reascenso abra as portas a uma nova hegemonia, a um verdadeiro proceso de mudanças sociais.
Assim, descrevo de forma suscinta os principais desafios que temos pela frente, em todas as forças sociais em nossos paises.
a) Retomar o trabalho de base, que eleve o nÍ­vel de consciência polÍ­tica e ideológica de nossa base social, e crie as condições para as lutas sociais massivas, que possam então desencadear um reascenso do movimento de massas.
b)Dedicar-se quotidianamente e de forma permanente na formação de nossos militantes e quadros. Para que conheçam com profundidade nossa realidade, saibam interpretá-la Í  luz dos ensinamentos clássicos, para poder transformá-la. É urgente formarmos enormes contingentes de militantes, dessa nova geração juvenil que foi obscurecida pelo neoliberalismo e pelo uso intenso dos meios de comunicação da burguesia.
c)Construir meios de comunicação de massa proprios dos movimentos sociais, dos partidos, das forças populares. Precisamos ter não apenas nossos jornais, rádios, mas ter acesso á televisão, e toda forma de comunicação de massa.
d)Debater, aprofundar o conhecimento , articular forças ao redor de um novo projeto de desenvolvimento popular. Ainda estamos longe de um socialismo latino-americano, e não podemos esperar por ele. E ao mesmo tempo precisamos derrotar o imperialismo e o neoliberalismo. Por isso, há um desafio de transição: que modelo econômico precisamos ir construindo que derrote as forças do capital internacional, nesse longo processo de transformação de nossas sociedades?
e)Precisamos ser crativos e diante desse novo perÍ­odo histórico, diante das transformações sócio-economicas que o neoliberalismo e o imperialismo produziram em nossas sociedades, construir novas formas de luta mássicas, que enfrentem o capital. Sabemos que as formas clássicas de greves, paralisações, passeatas, são insuficientes, e por isso precisamos ser criativos. E precisamos desenvolver novos instrumentos de luta, que consigam motivar as pessoas, aglutinar a juventude, dar sentido de esperança nas nossas lutas. E os sindicatos e partidos tradicionais demonstraram que são hoje instrumentos insuficentes para as novas tarefas que a correlação de forças colocou.Que instrumentos são esses, que podem se combinar com sindicatos, movimentos e partidos? Ninguém sabe! Mas são necessários serem criados, organizações polÍ­tico e sociais de novo tipo, adequados a nossa realidade, como no passado outros defenderam em relação ao seu tempo.

Como vêem, estamos trabalhando com reflexões, com desafios, com incertezas. Sem formulas ou modelos pré-determinados. Por isso, precisamos todos, aproveitar todos os espaços coletivos, e de unidade popular, em nossos paÍ­ses e a nÍ­vel continental, como são as redes de interesse, as cimeiras sociais, os FSM, para ampliarmos o debate, refletirmos, pesqusiarmos e encontrarmos coletivamente as verdadeiras saÍ­ds que podem nos conduzir a vitórias sobre os interesses do capital local e internacional. Enquanto não encontrarmos as formas de superar os desafios postos, seguiremos ainda por longo tempo, num perÍ­odo de resistência, e de acumulo de forças.

* Economista, Membro da direcção colectiva do Movimento dos Sem Terra do Brasil

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