Para onde vai Cuba?

Rémy Herrera*    05.Mar.12    Outros autores

Rémy HerreraCuba, como sabemos, está na vanguarda e contribuiu decisivamente para impulsionar os avanços regionais que se verificam na América Latina. Ela foi, é e será um exemplo para todo o Hemisfério Sul, porque coloca no centro do seu projecto de sociedade a transição socialista e a solidariedade internacionalista. Deve-se precisamente a isso a preocupação com alguns dos desenvolvimentos actuais na ilha, que poderão vir a interferir com o cumprimento destes objectivos.

A actual crise global do sistema capitalista mundial, em que estamos imersos, atinge, sem excepção, ainda que em diferentes graus, todos os paÍ­ses do Hemisfério Sul. Atinge também os paÍ­ses que se reivindicam socialistas, como na América Latina onde, após os avanços revolucionários registados durante a última década, da Venezuela Í  BolÍ­via, o risco de estagnação ou até de reversão, já não pode ser subestimado. Este facto obriga-nos a intensificar a solidariedade com estas revoluções. O que se passa em Cuba, o paÍ­s mais radical na luta anti-capitalista e anti-imperialista no continente latino-americano, mas atacada por um embargo inaceitável imposto pelos Estados Unidos?

As recentes mudanças internas
Cuba tem conhecido nos últimos meses mudanças internas importantes, no plano económico. Na sequência do VI Congresso do Partido Comunista de Cuba, em Abril de 2011, foi decidido empreender reformas, a um ritmo acelerado, embora controlado. Na sua maioria, essas mudanças económicas eram necessárias, se não indispensáveis. Tais são os casos da flexibilização da legislação nas vendas de veÍ­culos individuais ou o intercâmbio de habitação (o transporte e o alojamento são ainda problemas que urge resolver para melhorar a vida dos cubanos). Da mesma forma, ampliar o leque de actividades profissionais por conta própria autorizadas, em especial nos serviços (pequenos comerciantes, canalizadores, cabeleireiros, etc.) e ofÍ­cios manuais (sapateiros, carpinteiros, pedreiros, etc.), pode aumentar e diversificar a oferta, permitindo reintegrar nos circuitos oficiais um certo número de trabalhos que eram até então realizados mais ou menos informalmente.
Deve reconhecer-se portanto que é a orientação geral das alterações adoptadas que comporta perigos, preocupantes, e coloca a questão do próprio futuro do sistema socialista cubano. Porque, e pela primeira vez desde 1959, não se trata apenas de mecanismos de mercado (como durante o “perÍ­odo especial” que se seguiu ao colapso do bloco soviético) que foram introduzidos em Cuba, mas sim de elementos caracterÍ­sticos do capitalismo. Alguns destes estavam presentes antes, implicitamente, mas a coberto do Estado. Agora, a acumulação de capital privado é tolerada, bem como o trabalho assalariado, em pequenas empresas, e o crédito bancário estimulado.
Isto pode parecer coisa pouca, ou “natural”, mas é completamente novo em Cuba, e pode estar muita coisa em jogo. É positivo, afirma a maioria dos comentadores, nem que seja apenas por causa do aumento da produção, insuficientemente disponÍ­vel e indispensável Í  população, o que está longe de ser negligenciável. Mas também é negativo, porque as desigualdades sociais, já aprofundadas durante o perÍ­odo de dolarização do paÍ­s (de 1993 a 2004), com toda a probabilidade tenderão a agravar-se, num contexto em que as reduções de postos de trabalho decididos na administração pública provocaram desemprego, até então desconhecido, e onde o processo de des-dolarização, já num estádio avançado, está ainda incompleto. A economia cubana permanece “dual”, na medida em que há duas moedas a circular, uma para uso interno (o peso cubano ou CUP), outra equivalente ao dólar (peso convertÍ­vel ou CUC), com uma taxa de câmbio na ordem de 1 a 24 entre os dois.

Problemas não resolvidos

Essas mudanças, na sua maioria muito importantes, em certos casos necessárias, já o dissemos, não contribuirão no entanto para resolver os problemas estruturais da economia cubana. O principal problema, para o qual ainda se não encontraram soluções, é o dos motores do crescimento. Porque, depois da retirada daquela que era historicamente a especialização do paÍ­s, o açúcar, levada a cabo de forma notável na década de 2000, sem criar desemprego e com participação popular, foi o turismo que se tornou a primeira fonte de receitas, Í  frente das receitas adquiridas pelas exportações (incluindo o nÍ­quel e o tabaco), do investimento estrangeiro directo e do repatriamento dos rendimentos de cubanos no estrangeiro (as remesas). Isto pode satisfazer um paÍ­s cujo nÍ­vel de formação da força de trabalho é um dos mais altos do mundo em desenvolvimento.
Há outros problemas, também estruturais e relacionados com o crescimento, que também não estão resolvidos. Por um lado, o problema mais delicado é sem dúvida o da agricultura, onde as produções (e produtividade) são insuficientes. Felizmente, o governo cubano não pretende privatizar a terra (que é pública), o que garante o acesso aos solos. Regozijamo-nos com o facto de terem sido recentemente efectuadas novas distribuições de terras entre os camponeses. Mas o problema da debilidade do campesinato cubano, resultante da integração do paÍ­s no sistema capitalista mundial e da sua especialização açucareira ao longo de dois séculos não será fácil de resolver. Por outro lado, há desequilÍ­brios na balança de pagamentos (no difÍ­cil contexto do embargo, não nos podemos esquecer) na mesma linha dos da competitividade do sistema produtivo e conversibilidade da moeda.
Cuba não constitui certamente uma excepção neste ponto: estas dificuldades, relacionadas com a vulnerabilidade de um crescimento assente no turismo, com os esforços necessários para alcançar auto-suficiência alimentar, ou com os diversos obstáculos a ultrapassar para equilibrar as contas externas, são compartilhados por muitos pequenos paÍ­ses do Hemisfério Sul, e por várias das grandes economias ditas “emergentes”. SerÍ­amos tentados a acrescentar que alguns dos problemas que Cuba enfrenta são agravados pelo facto de que, mesmo no quadro da alternativa de regionalização em que participa, a Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA), a estratégia de desenvolvimento escolhida pelos vários governos progressistas em exercÍ­cio (apesar dos apelos recorrentes ao “socialismo” e a realidade dos processos revolucionários em curso impulsionados pelos seus povos) continua a ser uma variante da via capitalista. Os objectivos devem, obviamente, ser especificamente considerados, porque as situações, restrições e o equilÍ­brio de poderes diferem de paÍ­s para paÍ­s. Se pode parecer eventualmente aceitável promover certos elementos do capitalismo, em condições estritamente controladas e por um tempo limitado, num paÍ­s extremamente pobre, onde as necessidades sociais são imensas, é porém muito mais difÍ­cil de imaginar que o “socialismo do século XXI” possa prosperar numa economia com meios materiais consideráveis (as receitas do petróleo, por exemplo), mas cujas estruturas permanecem essencialmente capitalistas (ou numa sociedade de economia ). No entanto, decerto que a ALBA e, para além dela, a constituição de uma frente de autonomização do continente latino-americano (face Í  hegemonia dos EUA), recentemente ilustrada pela criação da Comunidade de Estados da América Latina e Caribe (CELAC), são de uma importância absolutamente fundamental (no âmbito da estratégica polÍ­tica, socio-económico, cultural, etc.) para o conjunto dos paÍ­ses do hemisfério sul.
Cuba, como sabemos, está na vanguarda desses avanços regionais, tendo contribuÍ­do decisivamente para os impulsionar. Ela foi, é e será um exemplo para todo o Hemisfério Sul, porque coloca no centro do seu projecto de sociedade a transição socialista e a solidariedade internacionalista. Deve-se precisamente a isso a nossa preocupação com os desenvolvimentos actuais na ilha, que poderão vir a interferir com o cumprimento destes objectivos.

*Investigador no CNRS (Centre National de Recherches Scientifiques)
Tradução de André R. Pereira da Silva

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